segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Habemus paxem ou um poema tolo

Adão Cruz

Magnífica surpresa nesta saga de poetas para as cinzas nocturnas!
Há um labirinto de ismos que se entrecruzam
de pontes sobre um rio seco ou rio desviado para lá de mim
lago de silêncio com a cidade ao longe
regateando simbolismos de esferas ocas semeadas pelo parque
monumental parque de outros ismos já mortos
à espera de uma ressurreição sob o reflexo de mil janelas
empoleiradas nos altos muros da cidade virtual
em serena ode à quietude universal.
Ali na esquina há fumo branco e o estribilho feroz
de um surrealismo macabro, de um débil concretismo
experimentalista hermeticamente grosseiro
gritando aos ares habemus paxem.
Na deserta anatomia do silêncio onde outrora a poesia já morou
grita bem alto o histórico fóssil da verdade
em pedaços de vida fumegante
e monstruosas resmas de páginas em silêncio.
Montanhas de nomes a apodrecer entre escombros de pensamentos
que embrulharam a consciência adormecida durante séculos
Inglórios sufocos de ar emoldurados de paz e de vida.
Lida a vida a vida inteira em semânticas fraudes simbolísticas
este atalho de fim de mundo nada encurta e tudo alonga.
Verdadeiro a correr e a cantar
esgueirando pela rua a frágil seara do corpo
só o paraplégico fazendo cavalo na cadeira de rodas.
Verdadeiro apenas aquele gajo sujo, de vanguardas audazes
colado á soleira numa caixa de cartão
mostrando os dentes que não tem
em arremedo de sorriso de ilusão.
Por isso o poeta é um descalabro á procura de se erguer
nem sequer é um fingidor
enrodilhado na sublimidade de um consciente atrofiado.
O poeta é uma merda.
Cada vez mais me enojam os poetas
na sua ambiguidade de tempo e espaço
no vazio da sua mentirosa e teatral ausência.
Abrandado o tempo na escassez da vida
nem da vida o poeta se dá conta.
O poeta é um cego com ares de quem tudo vê
O poeta é ridículo.
Inventa céus que não existem
engolindo patéticos peregrinos nos buracos negros das palavras.
Diz aquilo que ninguém entende para mostrar o que não sabe.
Fecha os versos no escuro como se branca fosse a noite inteira.
O poeta finge que diz o que mente naquilo que não vê.
O poeta ingénuo chama-lhe deslumbramento criativo contemporâneo
Cuspindo para o lado a lógica discursiva da normalidade sintática.
Não sabe que á volta do fumo se juntam quatro caminhos
ainda que nenhum deles tenha princípio ou fim.
E há um atalho de fé sem madrugada sobre as areias movediças da maldição
onde inexoravelmente se afogam a mente e a razão.
Entre a apriorística rejeição dos ismos como bandeiras de vazio
E a sublime depuração da beleza exaltante da poesia
Eternamente perdido entre o silêncio e a palavra
O poeta não passa de um dilema.
Por mais agudo que seja o grito da verdade
Se ele não traduz a alma e a força da existência
Não há verdade na essência do poema.


(Ilustração de Adão Cruz)

8 comentários:

  1. Bem que eu hoje precisava de um poema teu daqueles que me apaziguam a alma. Mas nem isso me aconteceu.

    ResponderEliminar
  2. Obrigado a ambas. Vou-te enviar um poeminha, Augusta,daqueles que apaziguam a alma

    ResponderEliminar
  3. Adão, do melhor que tenho lido ultimamente e não me refiro só aos teus.Na China, pensei muito nas nossas desavenças, não julgues que perdes tempo comigo porque não perdes. Ouço quem tem coisas importantes para me dizer e quem admiro.

    ResponderEliminar
  4. Quais desavenças, Luis! Não há desavenças entre nós, por mais que discordemos disto ou daquilo. Há sim um mútuo enriquecimento.

    ResponderEliminar
  5. Neste blog somos todos amigos. Zangamo-nos, berramos uns com os outros, às vezes só não puxo os cabelos a certas pessoas porque não estão à mão mas, no fim, fica tudo bem. Se não fosse assim, sentia-me mal. Era um ambiente sem as qualidades e os erros dos seres humanos,asséptico demais e ia infectar-me para outro lado.

    ResponderEliminar
  6. Uma das «certas pessoas», Vlad o paciente, usa o cabelo rapado.

    ResponderEliminar