terça-feira, 15 de junho de 2010

Zé Ninguém

Ethel Feldman

Em criança pensava que algumas pessoas nasciam nas esquinas, outras na maternidade. Quem nascia na maternidade crescia devagar, quem vinha da esquina nascia com rugas – morria sem dentes.

Da minha janela via o senhor José todos os dias. Umas vezes deitado, enroscado feito criança. Doutras, sentado de olhos fechados. Nas pernas o chapéu barrento pedia ajuda. Na boca um obrigado apressado a quem com pressa largava a esmola. Não me lembro de o ver comer. Não sei de cor o cheiro dele. Não sei a cor dos seus olhos - nunca cruzei seu olhar.

Sinto frio quando me lembro do seu corpo durante o Inverno. No chão, restos de papelão. No corpo um cobertor velho. No Verão tirava o casaco e mostrava sem pudor uma camisa sem cor.

Na memória seu nome por mim inventado – Senhor José, Zé da Esquina, Zé do Estrago, Zé sem sobrenome a rimar com Ninguém.

A esquina da rua Nossa Senhora de Jesus com a da Rua da Boa Morte era seu território ocupado.

Sempre pensei que os homens que dormem na rua, na rua nascem.

Hoje quando me deito sufoco de medo. Se me tirarem o cartão amassado no chão vou morrer de frio.

Nasci na Lapa, numa cama aquecida. Meu endereço? Desculpe, não me lembro do nome da esquina.

2 comentários:

  1. Bem tento que seja um conto...
    Depois invento que escrevo um romance, e até acredito que o faço. Meu pai diz:
    - Isto é prosa poética...
    Então me perco e deixo de saber a regra. Um conto tem isto, um poema em alguns casos deve rimar, um haicai tem 17 sílabas, um romance tem enredo.. Perguntam-me o que escrevo. E eu timidamente respondo:
    - Uns textos...
    Não sei bem o que faço. Sei que a vida tem regras só por necessidade prática e quando são muitas ZÁS! Toca a contestar senão morremos sufocados num colete de forças.
    Mas sabe bem 'ouvir-te' dizer poesia. :)

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