segunda-feira, 5 de julho de 2010

Bakunine por Bakunine (Raúl Iturra)


Carta a seus irmãos e irmãs



Meus queridos amigos! Eu sei a que perigo terrível vos expõe ao escrever esta carta.

Todavia, eu a escrevo; daí vocês concluirão o que é (palavra ilegível) grande para mim a necessidade de me explicar com vocês, e de dizer, ainda que fosse uma única vez mais, sem dúvida a última, em minha vida, livremente, sem coação, o que eu sinto, o que eu penso É a primeira vez, e será a última também que eu farei com que vocês corram risco. Esta carta é minha suprema e última tentativa de me reconciliar com a vida: uma vez bem esclarecida a minha posição, eu saberei se devo esperar ainda na esperança de me poder tornar útil segundo as ideias que eu tinha, segundo as ideias que ainda tenho e que sempre serão as minhas, ou se devo morrer. Não me acusem nem de impaciência, nem de fraqueza; seria injusto. Perguntem, ao contrário, ao meu capitão, agora major, ele repetirar-lhes-á o que me disse com frequência; que raramente ele viu um prisioneiro tão racional, tão corajoso quanto eu; estou sempre de bom humor, estou sempre rindo, – e, entretanto, vinte vezes por dia eu gostaria de morrer, de tanto que a minha vida se tornou penosa. Sinto que as minhas forças se esgotam, a minha alma ainda está forte, mas o meu corpo enfraquece; a imobilidade, a inacção forçada, a falta de ar e sobretudo um cruel momento interior que somente um prisioneiro isolado como eu poderá compreender, e que não me dá descanso nem de dia, nem de noite, desenvolveram em mim os germes de uma doença crónica que, por não ser médico, eu não posso definir, mas a cada dia se faz sentir em mim de uma maneira mais desagradável – são, eu penso, hemorróidas, complicadas por outros factores que eu ignoro; os males de cabeça não me abandonam quase nunca; meu sangue está em plena revolta, sobe ao meu peito, à minha cabeça, e sufoca-me a ponto de me tirar a respiração durante horas inteiras, e quase sempre escuto nos meus ouvidos um barulho parecido com aquele que produz a água fervente; duas vezes por dia, infalivelmente, eu tenho febre, antes do meio-dia e à noite, e durante o resto do dia sinto-me atormentado por um mal-estar interior que me queima o corpo, embaraça a minha cabeça e parece querer-me devorar lentamente; - vocês me verão; você me encontrará bem mudado, Tatiana, mesmo depois da última vez que nos vimos; uma vez tive a ocasião de me contemplar num espelho e achei-me terrivelmente feio. Quanto a isso, preocupo-me um pouco; renunciei, já faz muito tempo, aquilo que os velhos como eu chamam de vaidade, e que os jovens denominam, com mil vezes mais razão, a própria essência da vida; para mim permaneceu apenas um único interesse, um único objecto de culto e de fé, – vocês o denominaram e, se não posso viver para ele, não quero viver absolutamente. Pouco me importa a minha feiura, pouco me importaria também com esta doença se ela me quisesse levar a galope; eu não pediria nada melhor do que partir bem rápido com ela; mas rastejar lentamente para o túmulo, embrutecendo-me durante o percurso, eis o que eu não posso consentir. Minha moral ainda se mantém;

 minha cabeça está lúcida apesar de todos os males que, em regra, fazem dela sua residência; minha vontade, espero, não se dobrará nunca; meu coração parece de pedra, é verdade, mas dêem-me a possibilidade de agir e ele resistirá. Nunca, segundo me parece, tive tantas ideias, nunca ressenti uma sede tão ardente de movimento e de acção. Eu, portanto, ainda não estou completamente morto, mas esta vida da alma que, ao concentrar-se, tornou-se mais profunda, mais possante talvez, mais desejosa de se manifestar, torna-se para mim uma fonte inexaurível de tormentos que eu sequer tentarei descrever. Vocês não compreenderão nunca o que é sentir-se enterrado vivo; dizer-se a todo o instante na noite assim como durante o dia: eu sou um escravo, estou anulado, reduzido à impotência por toda a vida, por escutar mesmo da minha cela o murmúrio da grande luta que se prepara, de uma luta em que se decidirão as mais importantes questões da humanidade, e ter de permanecer imóvel e mudo. Ser rico de pensamentos, dentre os quais pelo menos uma parte poderia ser útil, e não poder realizar nenhum; sentir o amor no coração, sim, amor, apesar desta petrificação exterior, e não poder derramá-lo sobre nada ou sobre ninguém. Enfim, sentir-se pleno de devoção, capaz de todos os sacrifícios, de heroísmo mesmo, para servir uma causa mil vezes santa e ver todos estes arrebatamentos quebrarem-se contra quatro muros nus, minhas únicas testemunhas, meus únicos confidentes! Eis a minha vida! E tudo isso não é nada em comparação com uma ideia igualmente terrível: a do idiotismo que está fatalmente no fim de semelhante existência; tranquem o maior génio numa prisão isolada como a minha e vocês verão que após alguns anos um Napoleão se tornará estúpido, e Jesus Cristo, ele próprio, perverso; eu que não sou grande como Napoleão, nem infinitamente bom como Jesus Cristo, precisaria de muito menos tempo para me embrutecer completamente. Não é verdade que a perspectiva é gozadora? Eu ainda estou, e não me lisonjeio, de posse de todas as minhas faculdades intelectuais e morais; mas sei que isto não pode durar tanto tempo assim; as minhas forças físicas já se enfraqueceram muito; em breve será a vez de minhas forças interiores. Eu espero que vocês compreendam que todo o homem que se respeite um pouco deve preferir a mais cruel morte a esta lenta e desonrosa agonia. Ah! Meus queridos amigos, creiam no que digo, qualquer morte é preferível ao isolamento tão enaltecido pelos filantropos americanos. Por que esperei tanto tempo? Quem poderá dizê-lo; vocês não sabem o quanto a esperança é tenaz no coração do homem. Qual, vocês me perguntarão? A de poder recomeçar aquilo que já me trouxe aqui, somente com mais sabedoria e mais cautela talvez, pois a prisão teve pelo menos isso de bom para mim, deu-me o jazer e o hábito de reflectir, ela, por assim dizer, solidificou o meu espírito; mas ela nada mudou dos meus antigos sentimentos, ela, ao contrário, tornou-os mais ardentes, mais resolutos, mais absolutos do que nunca, e de agora em diante tudo o que me resta de vida resume-se numa única palavra: liberdade.

Fortaleza Pedro e Paulo. Fevereiro de 1854. Kornilov, Gody Stranstvij, op. cit. pp.495-496

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Ilustração: Bakunine aos 24 anos, em 1838, auto-retrato em aguarela.

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