segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Novas Viagens na Minha Terra
Manuela Degerine
Capítulo XCIV
Vigésima terceira etapa: A mulher que vê passar os comboios
Este albergue dispõe de uma máquina de lavar porém, para um par de calças, duas peúgas e duas camisolas, no máximo, não vale a pena utilizá-la. Demoro muito tempo a tentar desodorizar tudo com detergente e água abundantes – sem sucesso; lavo apenas a que vestirei amanhã, perdidas as ilusões quanto à secagem. Quando desisto de eliminar o odor, que não chega a ser mau cheiro, sem todavia nada ter de agradável, penduro a roupa no estendal da varanda.
A um metro de distância passa, muito devagar, um comboio. No primeiro instante acho bonito contudo logo me imagino pintada num cenário com comboios eléctricos: uma mulher estende roupa, pára para ver o comboio, como se fosse verdadeiro, ficando a repetir a mesma observação cada vez que a máquina passa.
Uma situação intolerável ao fim de meia hora; e o leitor não ignora que um cenário de comboios eléctricos dura decénios, em parte, certo, dentro da caixa – peripécia também pouco animada. Tanta monotonia pode dar dois resultados: a personagem consegue escapar-se ficando um espaço vazio no cenário, não apenas a silhueta (muitos associá-la-iam ao pintor Matisse, que soube transformar a ocorrência em estilo) mas, quase sempre, zonas mais irregulares – por esta razão aparecem nos quadros e tapeçarias grandes buracos, que aceleram a degradação da obra, um fenómeno que os melhores restauradores conhecem, apesar de nenhum se arriscar a declará-lo, preferindo sempre falar da traça ou da humidade; se não consegue sair sozinha, a personagem interpela o criador, como todos sabemos, exigindo mudança de estatuto, uma estratégia frequente embora, na maior parte dos casos, sem grandes resultados. Contudo, uma ou outra vez, todos encontrámos, na vida real, criaturas saídas de romances. (Ainda ontem conversei com a secretária humilde da Isabel Barreno... É directora de programas na rádio.) Ouvimos uma frase, que reconhecemos, fitamos a criatura... Parece uma personagem do Eça de Queirós. Pois parece e, sem dúvida, é mesmo: alguma que, por qualquer razão, entrou na realidade um século mais tarde. A ciência não sabe inteiramente explicar o funcionamento do cérebro humano e, muito menos, as passagens, tão complexas, entre a ficção e a realidade.
O pintor surge com cara de poucos amigos porém a mulher não se deixa intimidar. Que ao menos o comboio seja verdadeiro, ela também, poderá ver os passageiros, quem são, o que fazem, talvez capte um olhar, talvez algum passageiro volte a passar, talvez uma greve imobilize o comboio em frente da varanda... Mas o melhor é tirá-la dali, já basta de estender roupa, saturada de estereótipos até à ponta dos dedos, com menos conformismo pudera pintar um homem naquela varanda, mas avante, não se encontraram para falar de pintura, da condição feminina tão-pouco, se o destino dela são os comboios, então antes na bilheteira, o contacto directo, olhos nos olhos, por...
O pintor interrompe-lhe a frase objectando que, com aquela insubmissão, que ele ignora de onde vem, ter-se-ão as tintas alterado, descambou a obra para além do projecto, se a põe numa estação verdadeira, por exemplo, em Caxarias, ela acha monótono, acaba por se ir embora, ficam os passageiros, gente verdadeira, sem comprar bilhete, resultando um prejuízo para a CP – que até pode exigir indemnização.
A mulher encara-o perplexa. Que ideia esquisita: a estação de Caxarias?! Por que não a do Rossio?
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Das peúgas a Matisse, que imaginação, Manuela!
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