quarta-feira, 24 de novembro de 2010

1984. E as mulheres ? - 3

(Ilustração de Adão Cruz)


Augusta Clara de Matos

 

 (Continuação)

CULTURA E INFORMAÇÃO


I. - Eu como não estive em nenhum partido não tive essa experiência mas gostaria de pôr outra questão: quanto a Júlia diz que há mulheres que não tiveram acesso à cultura eu pergunto qual cultura?

Q e A - À informação, não é?


J. - Sim, à informação e mesmo à cultura escolar.

F. - Tenho a impressão que a cultura escolar é tudo menos cultura.

I. - Pois é, aí é que eu queria chegar. Aquilo que nos fornecem na escola não é cultura mas uma série de coisas que nos enfiam na cabeça, muitas delas sem qualquer utilidade e que se arrumam a um cantinho da memória para nunca mais se usarem durante a vida.

F. - Pois claro, aí é que está! Não são cultura só por si!

J. - Mas desenvolvem o raciocínio...

F. - O que só por si não chega.

J. - Pois não porque dá origem às mulheres tradicionais, às que não o são e a muitas outras mulheres e homens todos diferentes. Estou a falar, por exemplo, nas mulheres do campo que não tiveram acesso a esses dados.

I. - Não tiveram acesso a esse tipo de informação, mas o que não podemos é afirmar que elas não têm cultura. Têm a sua própria cultura que embora não coincida exactamente com a cultura dominante é por ela subjugada.

J. - Refiro-me, evidentemente, à possibilidade de estudar que dá, por outro lado também, a capacidade de exercer a crítica sobre essa cultura que é dominante.

Q e A - Como vivemos numa sociedade hierarquizada, aquele que mais for detentor de informação mais próximo poderá estar do poder, dos vários poderes coexistentes. E os outros, os que não tiveram as mesmas hipóteses têm disso consciência: de facto quem «sabe» é quem manda.


J. - Outro aspecto desta questão é que, ainda que tudo o que te digam seja informação, tu tens a capacidade de a filtrar porque estás preparada. Podes dizer «isto para mim não é informação, é zero». Para elas pode ser, estão totalmente desprotegidas.

F. - O que me parece é que as pessoas diferem muito no potencial que têm de se interessar pelos problemas ou de os ultrapassar. Nós fomos capazes de chegar até aqui e de superar determinadas ques-tões porque o nosso potencial é diferente do de muitas outras mulheres.

J. - Está bem, mas donde é que vem esse potencial? Eu não acredito que ele exista!

Q e A - Será potencial ou tem antes a ver com uma certa força e coragem de correr riscos?


J. - Agora é que disseste bem!

F. - E achas que isso não é potencial?

Q e A - Não é que tenha uma grande rejeição à utilização do termo. O que eu não quero é confundi-lo com qualquer capacidade inata, porque não acredito que o seja. Não podemos negar que é sempre difícil tomar decisões que possam vir a implicar solidão e, na luta das mulheres tem sido este um dos maiores medos porque a mulher sozinha continua a ser a mais discriminada.


DEPENDÊNCIA OU DIÁLOGO?

J. - A propósito disso não sei se já repararam que a maior parte dos casais que se separam, se forem sinceros, dirão que só o fizeram quando, pelo menos um dos seus elementos arranjou outro companheiro e não porque acharam que se deviam separar. Porque, precisamente, a solidão é difícil e as pessoas preferem manter um casamento vazio a separarem-se. Há, por outro lado, a conveniência de manter o estatuto social de casado que ainda pesa muito em certos círculos como no emprego, etc. Eu separei-me sem ter outra pessoa porque achava que as coisas estavam mal. Poderia ter aguentado, pois podia, há tanta gente que aguenta...

I.- E claro que, às vezes, também se cria uma amizade que fica para toda a vida e que é, para eles, muito mais importante que as outras relações exteriores.

F. - Ou não acreditam já na hipótese de estabelecerem uma relação melhor do que aquela que têm? Dizia-me, outro dia, alguém que estamos a viver em pleno século XX com um modelo de casamento do século XVIII. Por isso se vê o descalabro que para aí anda.

J. - E mais fácil acreditar que não se encontra do que lutar por encontrar?

Q e A - Volta a pôr-se aqui o problema da dependência: a maior parte dos homens e das mulheres, embora por motivos diferentes, raramente aceita a possibilidade de viver um tempo em função de si próprios.

F. - Porque há dependências económicas, há filhos. Uma coisa, no entanto, é certa: nós as mulheres, quando atingimos o estado de lucidez quanto ao reconhecimento de quem somos e do que valemos, somos muito mais capazes do que os homens de dar o salto dizendo «esta gaita não interessa, acabou». Aliás, actualmente, a maioria dos divórcios dá-se por iniciativa das mulheres. São seres muito mais autónomos.

Q e A - Talvez porque a relação no casamento tem sido, até agora e em regra geral, mais opressiva para a mulher do que para o homem: A libertação evolui preferencialmente no sentido da mulher, é um facto!


I. - Em todas as iniciativas que tomam as mulheres são muito mais audaciosas, são mais receptias às emoções. Eles, de uma forma geral, em todas as atitudes e comportamentos são muito mais conservadores.

J. - Está bem! Mas olha que infelizmente mesmo na nossa geração eles continuam a ter pelo seu lado a cobertura de muitas mulheres. Chegam a casa e têm a roupa lavada, tudo limpo, a comida a horas...

I. - Tinham!

Q e A - E continuam a ter porque se aceita que o homem ajude e não que assuma igualmente as responsabilidades da casa.

J. - E até porque as mulheres que tenham um pouco mais de dinheiro conseguem ter empregadas que executem essas tarefas.

I. - Mas não é tanto aí que está o problema, percebes? Todos nós conhecemos homens que são bestiais, que ajudam as mulheres, que não têm atitudes nada dominadoras, etc. Até um certo ponto, até onde isso não interfira com a sua esfera e com os seus conceitozinhos! Porque chega a determinado limite e, suponho eu que para aí 99% dos machos lusitanos, têm o mesmo tipo de reacções.

Q e A - Não acham que é altura de começarmos a discutir também com eles toda esta problemática: no fim de contas o que resultará da libertação dos dois sexos? Isto está dito, parece que já toda a gente o afirmou mas creio que não é demais insistir...

I. - Eu não sei se estou muito de acordo com isso. Esta pode não ser uma atitude muito bem aceite mas julgo que as mulheres devem conversar primeiro entre si porque, apesar de serem hoje a maioria da população portuguesa como da população mundial e muito importantes no campo económico - os homens têm o seu papel mas o trabalho de base é muito mais feito por mulheres do que por homens (ainda ontem o telejornal referia que mais de 50% da produção alimentar mundial está nas mãos de mulheres)...

F. - Não lhes dão outras oportunidades, o que é que elas hão-de fazer?

Q e A - E quem está nos lugares de direcção e de decisão dessas coisas todas?


I. - Mas como eu ia a dizer, não sei se estou muito de acordo com isso porque, enquanto nada estiver ainda consolidado nesta luta, o diálogo com os homens - e eu não sou contra ele - pode levá¬los a tentarem, logo de início, apoderar-se da situação e a orientá-la a seu bel-prazer.

Q e A - Mas é que, por outro lado, constatei ultimamente uma coisa interessante: há certas análises a este nível que quando lhes são facultadas os surpreendem bastante porque contêm aspectos e pontos de vista a que, por não procurarem deliberadamente inteirar-se deles, vulgarmente não dão atenção. Por isso é que defendo esta discussão com os homens já que a maioria dos que eu conheço têm uma nítida reacção de não ler os textos de análise sobre a mulher.

F. - Há maneiras de ser, há mentalidades, há indivíduos com quem é perfeitamente possível falar frente a frente. A maioria não é, mas também com a maioria das mulheres não se pode falar assim.

J. - Eu discordo da Isabel porque acho que os problemas das mulheres deviam ser, também. discutidos com os homens e, precisamente, porque há uma grande quantidade de mulheres que fomenta a ridicularização destas conversas. Há muitas mulheres que, por gostarem de estar sempre ao lado dos homens, decidiram manifestar-se contra as que se mobilizam à volta destas questões. Se vissem que há homens interessados em participar no debate sobre um mundo a ser construído em conjunto por todos os seres humanos talvez se decidissem a acompanhar-nos.

I. - O problema é que, muitas vezes, os homens se recusam a discutir connosco.

F. - São produtos duma sociedade que não foram eles - o Zé, o Manel, o Joaquim - que cria-ram.

I. - Mas ajudam a mantê-la e têm perfeita consciência disso! Um «tipo» do mesmo nível intelectual que nós, que recebe o mesmo género de informação, tem perfeita consciência daquilo que está a fazer. Eu até nem sinto a nível pessoal porque sou casada com um homem que não é nada machista...

Q e A - Mas sentes, de certeza, noutros locais.


F. -Eu sinto-os a nível profissional. Aí eu exijo que me tratem, dentro das minhas capacidades, em pé de igualdade com os homens mas o que acontece é que para chegar a determinados lugares tenho que lutar duplamente. Sou obrigada a impor-me pelas minhas qualidades profissionais e tenho que impor-me porque sou mulher. Tenho que provar duplamente que sou capaz.

TRABALHO, O MAIOR PASSO DA LIBERTAÇÃO?


I. - Temos estado aqui a falar de vários aspectos e há um que eu queria abordar: normalmente entende-se que é importante para a libertação da mulher que ela tenha uma actividade fora de casa. Ora, hoje em dia, eu creio que não se pode considerar a mulher dona de casa como diminuída em relação à mulher que trabalha. Por estar em casa não significa que seja menos importante para a socieda-de ou, à partida, mais ignorante porque contacta menos com outras pessoas. Eu própria, se tivesse possibilidades, vinha para casa. Considerar mais libertada a mulher que trabalha fora de casa é, quanto a mim, um conceito reaccionário.

Q e A - A questão que a Isabel levanta coloca o problema de se saber se a realização das pessoas, quer das mulheres quer dos homens, passa exclusivamente pelo mundo do trabalho.


J. - Como já afirmei, eu sou defensora de que toda a gente tenha igualdade de direito à instrução, aos estudos. Isso é fundamental. Mas há outra coisa que acontece a nível do emprego: é a possibilidade da diversificação de contactos, ao contrário do que acontece a quem fica em casa que quase só pode trocar impressões com o marido, os filhos ou com os amigos, regra geral possuidores de pontos de vista muito semelhantes aos seus. O emprego alarga, de facto, a comunicação.

I. - E a carga depreciativa que se lança sobre a mulher doméstica que eu não aprovo.

J. - Ah, isso também eu não!

F. - Ficar em casa, na maioria dos casos, está ligado à imagem convencional da mulher. Ela não faz mais nada para evoluir. Fica em casa para tratar do marido e dos filhos.

Q e A - Corta a ligação ao mundo real.


F. - E fica dependente economicamente do marido o que vai pesar muito numa eventual situação de ruptura. Claro que o emprego só por si não realiza ninguém e que há trabalhos fortemente estúpidos, com colegas que não interessam como relações humanas, e onde, afinal, acabamos por não evoluir nada.

Q e A - Parece-me importante focar aqui, como uma das muitas alienações existentes, o modo como os homens põem à frente de tudo a sua carreira profissional, secundarizando todos os outros aspectos da vida. Não será esta, também, uma das nossas diferenças?

F. - Eu tenho uma carreira à minha frente e dou muito interesse ao aspecto profissional porque não quero ficar economicamente dependente seja de quem for e não abdicava do meu emprego nem para ter meninos, nem para ficar em casa a lavar tachos. Não é porque considere depreciativo, mas não o fazia. Aí coloca-se-me, de facto outro problema: se eu quiser ter um filho como é que vai ser? Por enquanto não sei!

I. - O ideal seria as mulheres terem hipótese de arranjarem empregos em part-time, principalmente quando há muitos miúdos pequenos.

Q e A - Mas não só as mulheres!


J. - Isso era perigoso. Ou as hipóteses existiam par ambos os sexos ou voltava tudo atrás.

Q e A- O risco que a Júlia aponta é real. A insatisfação e sensação de ausência de realização no trabalho fora de casa é comum a homens e a mulheres. O que aconteceria era que a mulher acabaria por ficar em casa da maneira como sempre ficou ou, então, seria uma privilegiada doutra maneira, a viver à custa do dinheiro ganho pelo homem e, nesse caso, a igualdade não teria nada a ver com aquela que nós propomos: repensar o mundo e agir sobre ele em conjunto.

F. - A verdade é que não podemos dissociar, por enquanto, uma situação que é real doutra que o não é, porque se alguém aceita ficar em casa esse al¬guém é a mulher, não há dúvida! O que se passa com os homens é que, mesmo que não se sintam realizados no emprego, não admitem uma hipótese dessas, porque isso implicaria outro padrão.

(Continua)

6 comentários:

  1. Que bonito este quadro. Serão as mulheres com o mundo às costas? Só o Adão pode responder.

    ResponderEliminar
  2. Augusta Clara, acho que esta entrevista tem muito interesse - e não só para os arqueólogos, pois quer as perguntas, quer as respostas, revelam posições que, na maior parte dos casos, ainda hoje seriam muito correctas e adequadas. E já lá vão 36 anos! Parabéns, foi uma excelente ideia.

    ResponderEliminar
  3. Tens razão, Carlos. Com excepção do problema do aborto, que teve uma solução, os outros aspectos, passados estes anos todos, não evoluiram assim tanto como seria de esperar e desejar. E se referirmos aqui o problema da violência doméstica - de que não se falava tanto na altura, é certo porque estava escondida -, não sei se certos comportamentos não sofreram alguma regressão.

    ResponderEliminar
  4. É realmente impressionante a actualidade do texto, apesar da entrevista ter sido realizada há tantos anos.Persistem os problemas. E a meu ver, o egoísmo está sempre na base e é o responsável pela destruição das relações humanas, sejam elas de amizade, de amor, de trabalho...
    Temos de aprender e ensinar a " put yourself on the other side".
    Quanto à escolha dos quadros como ilustrações , o Carlos Loures é espetacular!
    Já nem me lembrava do quadro do meu irmão que ilustrou o meu texto " na outra margem " . Até me comovi com a escolha.

    ResponderEliminar
  5. São todos tão bonitos, Eva. Sinto-me uma privilegiada com estas ilustrações. Vai daqui um beijinho para o Adão.E, quanto ao que tu dizes, é verdade mesmo: é triste ver os tempos passarem e as relações humanas pouco mudarem no sentido dum maior companheirismo seja a que nível for. Um beijinho para ti.

    ResponderEliminar