quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Guilherme de Azevedo(1839-1882) - II

Carlos Loures

(Continuação)


Como já sabemos, tendo deixado de ser funcionário da Fazenda, Guilherme está agora disponível para ser escritor e jornalista a tempo inteiro. Encontra facilmente colaboração nos jornais de Lisboa, como a Lanterna Mágica (em cujas páginas, em 1875, Bordalo cria a figura do Zé-Povinho), a Gazeta do Dia, o Diário da Manhã. Algumas das suas crónicas jornalísticas são publicadas sob o sugestivo pseudónimo de «Guarda Nocturno». Em 1878 é-lhe proposta a direcção da revista Ocidente, cargo que aceita e onde se mantém até partir para França.

O Ocidente, Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro, fora criada em 1 de Janeiro desse ano pelo prestigiado gravador Caetano Alberto da Silva, Brito Rebelo e Manuel de Macedo, e vinha na sequência de outras revistas ilustradas, como O Ramalhete (1837), O Panorama (fundada por Alexandre Herculano em 1837 e que se manteve, com interregnos, até 1868), Arquivo Pitoresco (1856), Dois Mundos (1877), etc. A sua qualidade gráfica e literária é atestada pelos numerosos prémios que irá receber nas exposições de Paris (1878), Lisboa (1888), Antuérpia (1894), Saint Louis (1895), Paris (1900) e Lovaina (1907). Por esta revista, de que se publicam 31 volumes, passam grandes vultos intelectuais portugueses, tais como Guerra Junqueiro, Maria Amália Vaz de Carvalho, Pinheiro Chagas, Cesário Verde, Luciano Cordeiro, Jaime Batalha Reis, Cândido de Figueiredo, Gonçalves Crespo, etc. Aí, Guilherme publica as suas crónicas ocidentais. Voltemos a escutar Fialho:

«A vida literária no tempo de Guilherme, era pouco mais ou menos o que é hoje; misantropias azedas sem vintém, acessos de mau humor com pretensões paradoxais, ceias baratas, espanholas, redacções, Martinho, Grémio, Casa Havanesa, e os camarins de algumas cómicas mais puxadas. Guilherme de Azevedo vivia de república numa casa da Rua dos Retroseiros*, o terceiro andar que olha prò Frade, com Junqueiro, no esplendor então da sua verve demoníaca, com Luís de Andrade, Magalhães Lima e não sei quem mais.»2 Em suma, o jovem provinciano, qual herói de Eça, conquistara a capital.


Alma Nova


Quando em 1874 sai Alma Nova, o livro transporta já e dá corpo nos seus versos a esse anseio por uma literatura colocada ao serviço das ideias democráticas e revolucionárias defensoras de uma nova ordem social que despontam um pouco por toda a Europa. Esta obra desperta mesmo uma grande curiosidade nos meios literários da capital. Segundo Ramalho Ortigão assinala no Jornal do Comércio (13 de Abril de 1882), A Alma Nova «abriu caminhos inexplorados até então, dentro da nossa poesia.» Guilherme de Azevedo, o quase desconhecido santareno, transforma-se assim quase num poeta consagrado, num jornalista de prestígio, num precursor dos novos caminhos que irão abrir-se à literatura. O livro é dedicado a Antero de Quental – «Meu amigo, Este livro parece-me um pouco do nosso tempo. Sorrindo ou combatendo, fala da Humanidade e da Justiça, inspirando-se no mundo que nos rodeia.» Na realidade, Quental é a figura tutelar da chamada «escola nova» onde se inscreve a poesia realista de Guilherme. Por sua vez, o grande escritor açoriano elogia-o em A Revolução de Setembro (1871) e dedica-lhe o soneto Mais Luz (1872).

Óscar Lopes afirma que A Alma Nova (bem como já acontecia com Radiações da Noite) se conta «entre os livros de versos que mais contribuiram para fixar o estilo dos numerosos poetas panfletários desta época», sendo o seu tema «por excelência, a Cidade Burguesa, industrializada, enegrecida de fumo, proletarizada...»: Por seu turno, Manuel Simões, a quem se deve o mais esclarecedor estudo sobre Alma Nova e sobre Guilherme de Azevedo, diz:
«Todo o livro é percorrido por sinais que antecipam a visão de Cesário acerca da antinomia cidade/campo. De um modo geral, é o campo que sai exaltado no processo discursivo que organiza o material do discurso. É claro que a recusa da «civilização» citadina corresponde, algumas vezes, aos mecanismos republicanos que recusam servir o rei.» [...] «É inegável, porém, uma antipatia visceral pelo espaço urbano(«a cidade dormia o sono dos devassos», XXII), reiterada com insistência no poema XXIX:

Eis a velha cidade! a cortesã devassa,
a velha imperatriz da inércia e da cobiça,
não sendo arbitrária a permanência na estrofe seguinte dos significantes «lama» e «preguiça».»


Ramalho descreve-o

Ouçamos agora João Ribaixo, ou seja Ramalho Ortigão, na folha do Álbum das Glórias que é dedicada a Guilherme de Azevedo:

«Chegado de Santarém pelo comboio da manhã, ele entrou em Lisboa há onze anos trazendo consigo um livro primoroso – A Alma Nova.

Desde então até hoje a sua pena nunca mais cessou de correr no papel em alegres esfuziadas que, como um fogo de artifício, estalam na página em arabescos luminosos e em estrelas rutilantes.

Não é possível estar mais na publicidade e ao mesmo tempo aparecer menos em evidência.
Toda a gente o leu e ninguém pessoalmente o conhece.

No meio do estrépito retumbante da sua obra, assinada pelos pseudónimos famosos de Gil Vaz ou de João Rialto, na Lanterna Mágica e no António Maria, ele, encolhido, recluso, escorredio, atravessou a celebridade lisbonense pelo lado da sombra, caminhando no escuro em bicos de pés.

Os diferentes prazeres da glória, que consistem para o eleito em ser curiosamente apontado no Passeio Público pelas mulheres feias que infestam aquela região ao domingo à tarde, em ocupar uma cadeira em São Carlos e em ter um retrato fotográfico exposto nas vidraças da rua do Ouro entre o de um bailarino e o de uma cocotte – esses prazeres capitosos e ardentes, que tantas imaginações devoram no interior das nossas províncias –, Guilherme de Azevedo repeliu-os sempre com uma energia inexpugnável.

O Álbum das Glórias, abrindo nesta página um alçapão que faz tombar de chofre no meio do público a personalidade do organizador literário desta galeria, emprega a emboscada como único meio de trazer a lume esse perfil, o mais refractário às seduções de notoriedade. Apesar de coxear um pouco, por defeito físico, como Lord Byron, Guilherme de Azevedo é dos raros escritores que na imprensa caminha pelo seu pé. A maior parte dos jornalistas seus confrades andam pela mão, amparados às ideias e ao estilo dos outros.

Temos seguramente no país uns quinhentos ou seiscentos indivíduos perfeitamente habilitados para alinharem quotidianamente ao longo de uma gazeta três ou quatro colunas de frases aproximadamente correctas.

Cumpre unicamente advertir que essas frases nem exprimem as ideias nem representam os processos estéticos dos sujeitos que se encarregam de as reduir ao sinal gráfico. São as frases que toda a gente respira njo espaço e que se apanham no ar como moscas. A prosa expressiva, artística, pessoal, dando a imagem viva de uma ideia através da força de um temperamento, essa é apenas mantida nos jornais portugueses por uns quatro ou cinco escritores originais, que vão adiante; e todos os demais, consciente ou inconscientemente, os seguem.

Guilherme de Azevedo é um desses chefes de fila. Ele possui em alto grau as grandes qualidades do jornalista moderno: – a coragem da opinião, a fina sensibilidade mental perante a orientação científica do seu tempo, a suficiente dose de irreverência por todas as expressões da autoridade, e o poder da forma; – não da velha forma clássica dos compêndios de eloquência, mas da forma irregular e individual que mete a alma do artista na expressão da sua ideia e transforma o vocábulo inerte na palavra alada de que fala Homero.

(Continua)

(Adaptação da biografia publicada pelo autor em "Vidas Lusófonas")
______________________


Sem comentários:

Enviar um comentário