Antero Tarquínio de Quental (1842-1891)
Poeta e pensador português, natural de Ponta Delgada. Nascido a 18 de Abril de 1842, Antero recebeu uma esmerada educação religiosa, ao ponto de ter planeado tornar-se sacerdote, o que, a verificar-se, não seria caso único na família.
Diz-se, por exemplo, que, aos 12 anos já se extasiava com a poesia da Harpa do Crente, de Alexandre Herculano, uma poesia profundamente mística.
Aos 16 anos, porém, estava matriculado na Universidade de Coimbra, aonde chegavam as influências de vultos como Darwin, Proudhon, Marx, Michelet, Taine, Balzac, Flaubert, Zola, entre outros. Deste modo, não admira que, após a sua saída de S. Miguel, em carta autobiográfica, registe a seguinte confissão:
«Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida.»
Como o próprio Antero referiu numa carta a Cândido de Figueiredo, datada de 3 de Maio de 1881, dez anos antes da sua morte, era oriundo de uma família com antecedentes literários, de que destacava o Padre Bartolomeu de Quental «cujos sermões ainda hoje podem ser lidos com alguma utilidade» e o seu avô, André Ponte de Quental, «poeta nada vulgar» e amigo íntimo de Bocage. Segundo a mesma carta, publicou poemas, artigos e ensaios, entre os dezasseis e os dezassete anos, nos periódicos Prelúdios Literários, O Académico e O Instituto.
No continente desde 1855, estudou direito em Coimbra, entre 1858 e 1864. Durante esse período envolveu-se na agitação académica, particularmente através da organização secreta «Sociedade do Raio», de que era presidente. Datam também deste período as suas manifestações de entusiasmo face aos movimentos sociais europeus, bem como a leitura dos grandes teóricos do socialismo e dos filósofos da época, nomeadamente Proudhon e Hegel, que muito terão influenciado o seu pensamento. Foi igualmente no clima de agitação universitária que escreveu alguns dos seus poemas (muitas das composições que integram as Primaveras Românticas, publicadas apenas em 1872) e as Odes Modernas, publicadas em 1865.
Após deixar Coimbra, realizou uma viagem de veleiro aos EUA e Canadá, em 1869, voltando para Lisboa, onde trabalhou em actividades publicitárias em benefício dos trabalhadores, colaborando na tentativa de organizar a I Federação Internacional de Partidos da Classe Trabalhadora em Portugal. Nessa época, influenciado pelas teorias socialistas de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e acabou editando um pequeno jornal político.
Proudhon foi um escritor político francês, doutrinário do socialismo. Entre os escritores socialistas do século XIX, cabe a ele a originalidade de ser um escritor formado nas leituras de Hegel e da filosofia dialéctica. Mais do que um político e economista, Proudhon foi um moralista: com a paixão da justiça um tanto abstracta, fundada no respeito intransigente do indivíduo. Seguindo esta linha de raciocínio podemos constatar três exigências fulcrais no seu pensamento:
1ª- O direito do indivíduo ao trabalho
2ª- A igualdade das inteligências e o nivelamento da condição social do indivíduo.
3ª- O aniquilamento do Estado por parte do indivíduo como consequência lógica e necessária da revolução.
Só com o desaparecimento do Estado é que poderá surgir uma sociedade melhor, dando Proudhon mais relevância ao papel do indivíduo, alegando que a moral, a política e a economia se baseiam numa espécie de intuição, pela qual cada indivíduo se sente solidário com todos e está ligado à sociedade, que por sua vez tem como função garantir e aumentar a liberdade individual.
Segundo o próprio: "Negamos o governo do Estado, porque afirmamos a personalidade e a autonomia das massas." Todavia, essa sociedade cada vez mais complexa e sob o efeito das necessidades económicas, impediu Proudhon de conseguir boa aceitação junto do operariado.
Ainda em 1865, e reagindo a Castilho, despoletou-se a Questão Coimbrã, tão importante na evolução da cultura portuguesa, defendendo já a missão social da poesia por oposição ao lirismo ultra-romântico.
A Questão Coimbrã também se designou por Bom-Senso e Bom-Gosto. Os dois protagonistas são, por um lado, António Feliciano de Castilho e, por outro, Antero de Quental. Tudo começou com a proclamação de Castilho, no prefácio do poema de Pinheiro Chagas, Poema da Mocidade, de que o texto em questão tinha bastante nível e o seu autor um talento invejável. Na opinião de Antero, esta era apenas uma forma de louvar um dos seus jovens protegidos. Este facto levou Antero a lançar um opúsculo intitulado Bom-Senso e Bom-Gosto.
Estava montada a guerra literária que foi considerada como a polémica mais renhida de sempre em Portugal. O próprio Camilo se envolveu nesta polémica ao escrever Vaidades irritadas e irritantes, em que atacava, com sarcasmo, a nova geração literária. Em suma, pode-se dizer que esta polémica não foi mais do que um confronto entre os defensores do velho Romantismo, já a agonizar, e a juventude apologista do movimento literário que se seguiria, o Realismo.
Antero ascendeu, assim, a mentor da Geração de 70, pelo menos numa primeira fase. Entretanto, e após uma breve passagem pela terra natal, empregou-se como tipógrafo em Lisboa (1866), e depois em Paris, numa tentativa de contactar o mundo operário real.
De regresso a Lisboa, colaborou com José Fontana na elaboração de associações operárias e, ao mesmo tempo, dedicou-se à intervenção revolucionária escrevendo folhetos propagandísticos e artigos para a imprensa. Fundou, em 1872, a secção portuguesa da Associação Internacional dos Operários.
Ainda em 1865, publica Bom Senso e Bom Gosto, carta a Castilho, que teve várias edições em Coimbra e Lisboa, e A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, em Lisboa.
A este período de combate, que perdurou até cerca de 1875, esteve também ligada a organização das Conferências do Casino, ciclo da responsabilidade do grupo do Cenáculo (que incluía Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Batalha Reis, entre outros), que Antero elevara a centro de reflexão política, social e cultural.
Nas conferências, leu um dos seus textos de análise histórica mais célebres – «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» – que corresponde aos desejos de transformação do país que animavam a sua geração.
Em 1873, a morte do pai fê-lo regressar aos Açores, dotando-o de uma herança que lhe garantiu uma vida sem problemas económicos. Entretanto, atacado por uma doença estranha (identificada por alguns como psicose maníaco-depressiva), foi obrigado a moderar a sua actividade. Dirigiu ainda, com Batalha Reis, a Revista Ocidental (1875). Iniciou-se então um período de profundo pessimismo, que o levou a um sentimento da morte e da aniquilação pessoal (e universal), numa espécie de nirvana budista, como única forma de libertação face aos desespero de uma vida que via apenas como ilusão e vazio, e que os seus Sonetos Completos (reunidos em 1886) ilustram. Este período terminou por volta de 1880.
É, pois, este estado pungente de dúvida e de incerteza que irá determinar a sua poesia ao longo da sua vida, independentemente de alguns estudiosos, nomeadamente contemporâneos seus, como é o caso de Oliveira Martins, pretenderem definir diferentes períodos de produção literária.
Depois de ter afirmado, aquando da publicação das Odes Modernas, que «A Poesia moderna é a voz da Revolução», a sua obra poética ganha alcance em temas como a Justiça, a Fraternidade, o Amor, a Solidão, Deus, a Morte e o Nada, o que revela, à evidência, as suas verdadeiras preocupações.
A par dos que defendem a estratificação da sua obra de acordo com diferentes períodos da sua vida, há também quem afirme estarmos diante de um espírito em permanente convulsão, no qual já se sente fermentar a gestação duma heteronomia não declarada, que apenas viria a ganhar corpo, tal como a conhecemos, em Fernando Pessoa.
Não admira que o protagonista da célebre Questão Coimbrã, na generosidade da sua juventude e no espírito vanguardista das Odes Modernas, se dirigisse aos poetas do seu tempo, incitando-os ao combate em nome de valores como o Amor, a Fraternidade e a Justiça, que, no fundo, alimentavam o seu sonho de mudar o mundo: Tu que dormes, espírito sereno / [...] / [...] / Longe da luta e do fragor terreno, / / Acorda! É tempo! [...] / [...] / [...] / Um mundo novo espera só um aceno... / / Escuta! É a grande voz das multidões! / São teus irmãos, que se erguem! São canções... / Mas de guerra... e são vozes de rebate! / / Ergue-te, pois, soldado do Futuro,».
Num outro soneto, depois de falar «Dum Deus que luta, poderoso e inculto» e que se manifesta nas florestas, na serra, no espaço constelado, no mar, estabelece o contraste com o que se verifica nas «negras cidades», naquilo que me parece ser clara alusão às consequências da Revolução Industrial: «Mas nas negras cidades, onde solta / Se ergue, de sangue, a revolta, / Como incêndio que um vento bravo atiça, / /Há mais alta missão, mais alta glória: / O combater, à grande luz da história, / Os combates eternos da Justiça!».
Em meio a essas actividades, foi acometido por crescente descontentamento. Abandonou muitos projectos e rasgou antigas poesias. A seguir, desenvolveu séria doença na coluna para a qual os tratamentos traziam apenas alívio temporário. Durante período de calma intermitente, escreveu alguns de seus últimos e melhores sonetos.
Em 1881, retirou-se para Vila do Conde, assumindo a educação das filhas, entretanto órfãs, de Germano Meireles, um seu amigo, e vivendo em relativa calma até ao fim dessa década. Aceitou ainda, em 1890, a presidência da Junta Patriótica do Norte, um dos movimentos da reacção do ultimato inglês.
Aos seus problemas pessoais e à persistência da doença, somava-se a desilusão face ao estado do país. Em 1891 regressou a Ponta Delgada e, nesse mesmo ano, suicidou-se.
Sofrendo de intensa dor física, insónia e de pressão aguda, sentou-se em frente ao Convento do Senhor Santo Cristo dos Milagres, num banco de cimento onde estava gravada a imagem de uma âncora atravessada em diagonal pela palavra “ESPERANÇA”, e lá se suicidou, com dois tiros no peito.
A obra de Antero, que reflecte, quer uma evolução, quer a coexistência simultânea de várias facetas da sua personalidade e de um intenso drama interior, é fundamentalmente a de um pensador, de um doutrinário e conceptualizador.
Mesmo o sentimento erótico e amoroso, presente em poemas de juventude, acaba por se tornar fundamentalmente alegórico, reflectindo anseios e abstracções, mais do que uma emotividade pessoal do poeta.
Porém, a cruel realidade da vida desvanece tamanho altruísmo e o herói vacila, evidenciando um espírito cada vez menos sereno e comportando-se como barco à deriva em mar revolto e tempestuoso, em busca desesperada dum seguro porto de abrigo. Se, num soneto, por exemplo, faz a apologia da luz, num outro, embrulha-se na protecção da noite: «Amem a noite os magros crapulosos, / e os que sonham com virgens impossíveis, / E os que se inclinam, mudos e impassíveis, / À borda dos abismos silenciosos... / / [...] / / Eu amarei a santa madrugada, / E o meio-dia, em vida refervendo, / E a tarde rumorosa e repousada. / / Viva e trabalhe em plena luz: depois, / Seja-me dado ainda ver, morrendo, / O claro Sol, amigo dos heróis!».
«Noite, vão para ti meus pensamentos, / Quando olho e vejo, à luz cruel do dia, / Tanto estéril lutar, tanta agonia, / E inúteis tantos ásperos tormentos...».
É inegável que é já o reflexo do desalento que manifestará em muitos outros poemas, de que é exemplo paradigmático O Palácio da Ventura, um soneto em que podemos assistir a uma espécie de balanço introspectivo da sua vida: «Sonho que sou um cavaleiro andante / Por desertos, por sóis, por noite escura. / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura!»
Apesar das adversidades anunciadas, de forma eloquentemente metafórica, no segundo verso, este paladino do amor (universal), procura, ansiosamente, o palácio da Ventura, isto é, tudo o que possa simbolizar o seu sossego, a sua tranquilidade, no fundo, a felicidade a que todo o ser humano aspira por direito de nascença. Todavia, antevê-se já a frustração final deste cavaleiro. É que se trata de um cavaleiro que se não afirma como sendo, mas como sonhando que é, e, como se não bastasse, o quarto verso aponta para um objecto de busca que só ganha forma no mundo a que pertence, o mundo feérico e onírico, o mundo da fantasia.
«Mas já desmaio, exausto e vacilante, / Quebrada a espada já, rota a armadura... / E eis que súbito o avisto, fulgurante / Na sua pompa e aérea formosura!»
O desafio parece inumano, por isso não é de estranhar a tibieza manifestada nos dois primeiros versos desta segunda quadra. É apenas um momento mais de desalento, como tantos da sua vida. Entretanto, parece avistar, lá longe, o objecto da sua busca, uma espécie de luzinha no fundo do túnel, fazendo renascer a esperança. Mas, tal como acontece aos beduínos do deserto (elemento apontado já na primeira quadra), constata-se que tudo não vai passar duma mera miragem, fruto do seu ardente desejo, fruto duma ânsia desmedida: «Com grandes golpes bato à porta e brado: / Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... / Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! / / Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...» E enquanto as portas se abrem, parecerá infindável esse momento de enorme expectativa: é fácil adivinhar a ansiedade do cavaleiro que quer ver banidos para sempre os seus desesperos, os seus sofrimentos, as suas angústias. «Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão – e nada mais!»
Não espanta, por isso, que um espírito, num estado de alma como este, procure, desesperadamente, a tranquilidade final e absoluta – absoluto que, no fundo, terá sido a grande causa de toda a sua angústia existencial: «E o homem porque vaga desolado / E em vão busca certeza que o conforte? / / Mas, na pompa de imenso funeral, / Muda, a noite, sinistra e triunfal, / Passa volvendo as horas vagarosas... / / É tudo, em torno de mim, dúvida e luto...».
Daqui ao refúgio na morte é apenas o tempo de um ai: «Se esta espada que empunho é coruscante, / (Responde o negro cavaleiro andante) / É porque esta é a espada da Verdade. / / Firo mas salvo... Prostro e desbarato, / Mas consolo... Subverto, mas resgato... / E, sendo a Morte, sou a liberdade.». A liberdade, sim, porque a morte liberta-o de todo o sofrimento: «Em mim, os Sofrimentos que não saram, / Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem. / As torrentes da Dor, que nunca param, / Como num mar em mim desaparecem.» Não surpreende, pois, que o poeta se lhe entregue: «Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal, / Morte libertadora e inviolável!».
No entanto, reminiscências da sua cultura judaico-cristã parecem trazer à superfície um certo complexo de culpa, que não de pecado: «Talvez seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar contigo e adorar-te, / Não-ser, que és o Ser único absoluto.»
Esta é, talvez, a grande verdade a que chegou o espírito angustiado do poeta: a morte como único absoluto a que pode ascender a razão humana.
Num último golpe de desespero, lança-se nas mãos da sua derradeira e extrema pretensão, a de um Deus no qual gostaria de acreditar: «Na mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou afinal meu coração. / [...] / Como criança, em lôbrega jornada, / Que a mãe leva no colo agasalhada / E atravessa, sorrindo vagamente, / / Selvas, mares, areias do deserto... / Dorme o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão de Deus eternamente!».
Mas, ainda agora, o sono não é um sono profundo e tranquilo: [Deus] «Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo, / Há-de fugir-me, como a ingrato filho? / Ó Deus, meu pai e abrigo! Espero!... Eu creio!».
Será que crê? Se tal fosse verdade, desaparecer-lhe-iam todas as dúvidas que lhe alimentam as angústias, desapareceriam os pesadelos de seu sono intranquilo: «Só uma vez ousei interrogá-lo: / - “Quem és (lhe perguntei com grande abalo), / Fantasma a quem odeio e a quem amo?” / / – “Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos, / Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos... / Mas eu por mim não sei como me chamo...”.
Por mais que proclamasse a conversão, é de crer que nunca a terá alcançado, para infelicidade sua: «Entre os filhos dum século maldito / Tomei também lugar na ímpia mesa, / [...] / Mas um dia abalou-se-me a firmeza, / Deu-me rebate o coração contrito! / / Erma, cheia de tédio e de quebranto, / Rompendo os diques ao represo pranto, / Virou-se para Deus minha alma triste! / / Amortalhei na Fé o pensamento, / E achei a paz na inércia e esquecimento... / Só me falta saber se Deus existe!».
Como viver em paz um espírito assim?
Antero de Quental pôs termo à vida em 11 de Setembro de 1891.
Poeta da razão, da revolução, mas também do pessimismo, foi um sonetista exemplar.
Em prosa, onde revela grande poder oratório, levou a cabo o melhor da sua obra crítica e doutrinária, na análise da filosofia da história portuguesa (como em Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, ensaio publicado, em 1890, na «Revista de Portugal», de Eça de Queirós) e na crítica do positivismo então dominante, a que opunha a necessidade de uma consciência espiritual no mundo. A esta concepção está ligada a ideia de santidade que sempre o dominou — não no sentido religioso cristão, mas com expressão no seu espírito belicoso, numa epopeia da humanidade e da revolução, na sua fase combativa, e, em princípio e fim de vida, num apelo místico interior.
Pela sua estatura intelectual, pela mestria da sua técnica do soneto e pelo seu contributo para a história das ideias, é um dos nomes fundamentais da cultura portuguesa.
Tal como José Fontana, Antero de Quental é considerado um dos grandes inspiradores e fundador do Partido Socialista português.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
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