Adão Cruz
Hoje de manhã, enquanto passeava a minha netinha, um homenzinho gritava a plenos pulmões, fazendo-se ouvir em toda a rua: o cavaco e o primeiro-ministro arruinaram este país e o povo continua burro. Na verdade, ele não dizia arruinaram, dizia foderam, eu é que procurei fugir à asneirola.
A raiva com que ele clamava, alto e bom som, não passava despercebida a alguns transeuntes que assentiam levemente com a cabeça, se calhar também com a mesma vontade de gritar uma tão grande verdade, não fora o facto de serem tidos como malucos.
Eu era um deles.
De facto, depois do que fizeram deste pobre país, depois de se terem rodeado de uma legião de ladrões e corruptos, e terem estourado com tudo, depois de permitirem e abrirem caminho ao assalto e ao roubo da nação, deixando-a nas lonas materiais, psicológicas e sociais, depois de devorarem o país, têm a lata preparar eleições para exumar o cadáver, como abutres, a ver se ainda há restos para comer.
Apenas por uma questão de linguagem mais limpa não diria foderam.
(Iludtrações de Manel Cruz)
ehheh como dizia um desses homens ainda jovem, no outro dia na baixa de Lisboa "até a água sabe mal..."
ResponderEliminarAdão,
ResponderEliminarAinda queria escrever uma coisita sobre os "tabuismos" que o Carlos Loures abordou num artigo recente, se vencer a preguiça com que ando para abordar coisas mais sérias.
Mas, em tentativa de síntese: a linguagem não é limpa ou suja, conforme as palavras que se usam. Aquilo a que chamas "asneirola" não é mais que uma das muitas palavras que fizeram o seu caminho, no largo rio da língua, pela correnteza mais popular e socialmente "inferior"; e não tinham outro caminho, essas pobres palavras que se referem a temas, como o sexo, de que as "pessoas de bem" não deviam falar (a não ser o bravo macho burguês ou aristocrata, nos bordéis que tinha a obrigação de frequentar, falando então, entre "iguais" e com as putas que os "serviam", nesse linguajar popular - que outro, aliás, não conheceriam, pois era coisa de especialistas - médicos, especialmente)... Em casa não se falava dessas porcarias, fornicava-se (como dizia o sr. padre) a legítima, com moderação e virtude, sem fantasias pecaminosas que poderiam revelar à infeliz outros mundos - mais risonhos e prazerosos -, com o abençoado intuito de procriar herdeiros de fazendas e títulos. Não se falava "como um carroceiro", tal como os meninos não rapavam o prato... para mostrar que não eram uns esfomeados como a prole da populaça.
Pois é, as palavras também reflectem as divisões de classes. Mas, como vão ganhando conotações que lhes enriquecem significados e definem usos, só por razões egoístas é que não quero que vulgarizem os "tabuísmos" - por insuficiência de vocabulário -, roubando-lhes expressividades provectas, cujo uso, rarefeito mas afinado e em ocasião que o propicie, é utilíssimo.
Ora, digamos, a terminar, que a palavra usada pelo homenzinho é perfeitamente adequada à ocasião, ao tema e às personagens referidas.
Paulo Rato