sábado, 25 de dezembro de 2010

Um conto de Natal de António Lobo Antunes - O Natalzinho

O nosso Natal foi ficarmos a gente os dois aqui em casa com um pinheiro a piscar lâmpadas a noite inteira. O pinheiro deitámo-lo fora no dia seguinte.

(primeiro encostado à porta juntamente com o lixo e depois entornado no contentor da rua onde encontra, entre garrafas vazias e papéis de embrulho, outros colegas pinheiros, como ele sem estrelas nem bolinhas prateadas)

mas as lâmpadas, unidas por um fio eléctrico, guardamo-las numa caixa de cartão, outrora caixa de sapatos, que por sua vez se arruma na prateleira mais alta da despensa onde moram as coisas de que precisamos menos
(um calorífero avariado, a canadiana de quando torci o pé, o retrato do meu sogro, os remédios fora do prazo)
e onde permanecem, sem piscar nada, até ao próximo Natal. Para as desencantar a minha mulher traz o escadote da marquise
(que eu fico a segurar devido às suas tendências traiçoeiras manifestadas por intermédio de desequilíbrios e oscilações)
sobe a medo os três degraus metálicos prevenindo

- Vê-me lá isso

remexe o calorífero, a canadiana, o retrato e os medicamentos

(não sei como, as lâmpadas emigram sempre lá para o fundo onde moram baratas, pantufas velhas e pó)

alcança a caixa após manobras intermináveis acompanhadas dum vocabulário de chofer de táxi, a quem abalroaram pela esquerda, e cuja energia e variedade me surpreende sempre numa pessoa naturalmente mansa e calada, tenta entregar-me o Natal exigindo que o receba sem largar o escadote, o que é difícil, arredonda mais frases de chofer de táxi, à procura, a descer os degraus, tacteando-os um a um. De costas para mim com as Boas-festas nos braços, despenteada e exausta, observa o escadote num palavrão derradeiro, jura que para o ano retirará as decorações da gaveta dos talheres que não exige alpinismos, eu transporto o escadote para a marquise a tropeçar na mobília e arrancando a pinturas dos móveis, e como já colocámos o novo pinheiro no vaso

(não o deixando suspeitar do destino de lixo que o espera)

basta-nos desenrolar a grinalda de ampolas de cores diferentes em torno dos ramos, pendurar as bolas prateadas, colocar a estrela no topo e ligar a ficha à tomada de corrente para que o Natal desate a piscar a sua alegria pulsatória. Em regra assim que aplico os dois cilindrozitos metálicos na tomada uma das ampolas explode, os fusíveis rebentam e andamos por ali às escuras a esbarrarmos um no outro

(eu e o chofer de táxi a quem as trevas enriqueceram a capacidade de expressão)
em busca do contador da luz. Encontrado o contador à custa de fósforos que nos queimam os dedos e esburacam a alcatifa

(o chofer de táxi exalta-se sempre quando nota a alcatifa esburacada)

accionando o interruptor, observamos as lâmpadas uma a uma, atarraxamos os casquilhos que nos parecem soltos, pegamos na ficha a medo, afastamos o sofá
(nessas alturas o sofá, quase sempre leve, decide pesar arrobas)
para utilizar a tomada, aparentemente mais benigna, na parede por trás dele, olhamo-nos a ganhar coragem, introduzimos os cilindrozitos metálicos nos buracos e o prédio inteiro desaparece com um estrondo. O piquete camarário, que um vizinho que principia a odiar-nos convocou, fala de sobrecarga no sistema, o que me parece uma denominação um bocado forte quando aplicada a qualquer coisa que se pode arrumar numa caixa de sapatos, e sugere-nos, através dum funcionário de boina conhecedor dos mistérios das resistências e dos ampères, que se queremos ter “um Natalzinho em condições” o melhor é desligar todas as máquinas usar círios românticos para o jantar em lugar do lustre, e embrulharmo-nos em cobertores para diminuir as probabilidades de uma pneumonia que ele apelida, com convicção, “das tesas”. De forma que colamos duas ou três velas a dois ou três pires, com pingos de estearina que preferem cair fora dos pires e raspados à faca nos estragam as cómodas, semeamos pela sala aquelas chamazinhas fúnebres
(aos buracos na alcatifa acrescentam-se agora manchas negras no tecto)
a minha mulher traz o xaile, eu visto o sobretudo, jantamos bacalhau e trocamos prendas com a árvore a aparecer e a desaparecer ao ritmo da grinalda e nós a aparecermos com ela, como um par de fantasmas ora azuis outra nada, ora verdes ora nada, ora amarelos ora nada, e sempre que azuis ou verdes, ou amarelos, fantasmagóricos e enormes, projectando sombras quilométricas nas paredes. O meu fantasma recebe umas luvas de lã e um porta-chaves, o fantasma da minha mulher um colar de pérolas quase autêntico e uma escovinha e uma pá de cobre de limpar as migalhas da mesa. Passada meia hora de silêncio enregelado um de nós sugere que se apague a árvore, o outro, intermitentemente invisível, afirma que não se pode por respeito à quadra. E acabamos por deitar-nos em gestos que o pinheiro tinge de arco-íris, proibidos de adormecer por aquele fervor luminoso que transforma o quarteirão num ventrículo disforme de sístoles e diástoles eléctricas, enquanto as chamas das velas se dissolvem nos pires numa fumaça nauseabunda. Acordamos não num apartamento mas numa prisão turca a seguir a um motim sobre cujas ruínas o Natal vai piscando, indiferente, a sua satisfação inalterável, e usamos a escovinha e a pá de cobre para nos desfazermos dos cadáveres. Quando a Amnistia Internacional vier investigar os nossos crimes contra a Humanidade será recebida por uma senhora de colar de pérolas quase autênticas e um cavalheiro de sobretudo, azuis, verdes e amarelos, com um pinheirinho inocente na mão.

(Segundo Livro de Crónicas, Publicações Dom Quixote)

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