Carlos Loures
Prosseguindo neste debate em que, com o Adão Cruz, tenho vindo a dar achegas para a compreensão da poesia enquanto fenómeno social, trago hoje um testemunho de um filósofo e antropólogo britânico, George Derwent Thomson (1903-1987). Num estudo que publicou em 1945 e que a que deu o título de «Marxism and Poetry» (com uma edição portuguesa, da Teorema, em 1977 – «Marxismo e Poesia»), aborda o tema de uma óptica onde se integram a sociologia, a antropologia e a linguística. Baseia-se, principalmente, em estudos de campo e na recolha de testemunhos de sociedades primitivas, já que a poesia produzida por esse tipo de sociedades não pode ser estudada em espécimes escritos; a sua natureza oral antecede em muitos milhares de anos a escrita e o conceito de literatura. Como Thomson diz, a poesia representa um tipo especial de palavra – se queremos estudar a sua origem, temos de a procurar na origem da palavra e isto, em última análise, significa estudar a origem do homem, pois a palavra constitui um dos traços distintivos mais importantes do homem.
O aparecimento do homem não está cabalmente explicado e localizado no tempo,. Há, porém um ponto em que os investigadores estão de acordo – o homem diferencia-se dos outros primatas através de duas características principais: pelo uso sistemático de utensílios especializados e pela palavra. De uma forma mais geral, os primatas diferem dos vertebrados inferiores por serem capazes de permanecer de pé e de usar as extremidades anteriores como mãos. Ter-se-ão desenvolvido e evolucionado a partir de condições particulares do meio e que determinaram um progressivo aperfeiçoamento da região do cérebro que comanda os órgãos motores. Animais florestais, a vida nas árvores, exigiu-lhes agilidade, rigorosa coordenação da vista e do tacto (visão binocular e um delicado controlo muscular). Desenvolvidas as mãos, elas colocaram ao cérebro uma gama de novos problemas, recebendo em troca um mundo de novas possibilidades. Desde a origem, portanto, existiu sempre uma total ligação entre a mão e o cérebro.
O homem difere dos outros primatas evoluídos, por conseguir não só colocar-se de pé, mas andar erecto, usando só os membros inferiores. Há quem defenda que esta aptidão se desenvolveu em consequência de um despovoamento arborícola que o forçou a instalar-se no solo. Seja isto verdade ou não, o importante é ele ter operado uma completa divisão, uma especialização, entre as funções das mãos e as dos pés. Os dedos grandes dos pés perderam a preensabilidade; os dedos das mãos atingiram um elevado grau de destreza, desconhecida entre os demais primatas superiores – gorilas e chimpanzés, por exemplo, podem manipular troncos e pedras e usá-las como armas ou ferramentas, mas só as mãos humanas conseguem transformar esses materiais em utensílios especializados.
Esta terá sido uma etapa decisiva, pois marcou o início de um novo sistema de vida – o homem, equipado com utensilagem, lançou-se na produção dos seus meios de subsistência, em vez de pura e simplesmente deles se apropriar – cavou a terra, plantou-a, regou-a, colheu, moeu os grãos, fez o pão. De utente passivo da natureza, passou a controlá-la e, nessa luta por dominá-la, apercebeu-se de que ela se regia por leis próprias, independentes da sua vontade. Apreendendo o sentido dessas leis naturais, deixou de ser escravo da natureza, passou a ser seu amo.
Necessitando de encontrar uma explicação para o universo, concebia-o como coisa que pudesse ser transformada por actos arbitrários da vontade – terá surgido a magia como técnica ilusória compensadora da falência da técnica real; ou digamos antes que é a técnica real apresentada sob um aspecto subjectivo. O acto mágico é a tentativa que os homens fazem para impor a sua vontade ao meio, imitando o processo natural que querem desencadear – se querem chuva, executam uma dança em que imitam o movimento das nuvens adensando-se, o ruído do trovão, o raio que cai… Nos estádios iniciais, o trabalho de produção era colectivo. As mãos da comunidade trabalhavam em conjunto e, o emprego de utensílios, motivou um novo meio de comunicação. A gama de gritos animais é limitada. No homem, porém, esses gritos tornaram-se articulados, foram elaborados e sistematizados como meios de coordenação dos movimentos do grupo. Por isso, quando inventou os utensílios, o homem inventou a palavra. Mais uma vez se verifica a íntima ligação entre a mão e o cérebro.
Quando vemos uma criança a tentar manejar pela primeira vez um pequeno martelo, podemos imaginar o grande esforço mental que as tentativas iniciais para usar um utensílio devem ter custado ao homem. Tal como as crianças na orquestra do infantário, o grupo trabalhava em comum e cada movimento da mão ou do pé, cada golpe sobre uma pedra ou sobre uma vara era ritmado por um recitativo mais ou menos inarticulado que todos cantavam em uníssono. Sem esse acompanhamento vocal o trabalho não poderia ser executado. A palavra terá, pois, surgido como elemento essencial da produção colectiva.
À medida que a habilidade foi evoluindo, o acompanhamento vocal ritmador foi deixando de constituir uma necessidade psíquica. Os elementos do grupo foram sendo capazes de trabalhar individualmente. Mas o aparelho colectivo sobreviveu sob a forma de uma repetição executada antes do início da tarefa concreta – uma dança através da qual os trabalhadores reproduziam os movimentos colectivos que anteriormente eram indissociáveis da tarefa propriamente dita. É aquilo a que os antropólogos chamam «dança mimética» e que ainda hoje se pratica entre as tribos primitivas.
Entretanto, a palavra desenvolveu-se – de acompanhamento directo do emprego de utensílios, na origem, transformou-se em linguagem tal como hoje a conhecemos – um meio de comunicação, consciente e articulado, entre os indivíduos. Sobreviveu na dança mimética e, enquanto parte falada, manteve a função mágica. Assim, em todas as línguas, encontramos dois modos de conceber a palavra – a «palavra corrente», o meio de comunicação quotidiano entre os homens, e a «palavra poética», material mais expressivo e mais apropriado aos actos colectivos do rito fantástico, rítmico e mágico.
Tentei aqui sintetizar, reproduzindo o sentido, o raciocínio de Thomson. Se o seu raciocínio é correcto, isso significa que a linguagem poética é essencialmente mais primitiva do que a palavra corrente, na medida em que preserva em elevado grau as qualidades de ritmo, de melodia, de fantasia, inerentes à palavra enquanto tal. Sendo apenas uma hipótese, apoia-se no que se conhece das sociedades primitivas – verificamos que a diferenciação entre a palavra poética e a palavra corrente é relativamente incompleta. Thomson estabelece, pois, uma estreita ligação entre colectividade, trabalho e poesia. É uma tese que vem colidir com os que querem que a poesia se situe num plano isolado (e superior) da realidade objectiva; esta teoria vincula a palavra poética, desde a sua mais remota origem, às tarefas concretas do quotidiano, nomeadamente ao trabalho.
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domingo, 29 de agosto de 2010
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Isso até se vê nas crianças que aprendem primeiro "composições" onde a métrica, o ritmo, e a beleza estão presentes.
ResponderEliminarQuando o meu professor de Português Alberto Fialho Júnior me (nos ) levou à poesia. disse-nos que nunca antes se tinha apaixonado pela poesia, sem ter lido a Tabaqueira de Pessoa. Não, o que ele disse foi no que se refere à poesia moderna, sem pontuação, sem rima...e dizia que eu (criança) sempre que ouvia um poema de Pessoa reagia perguntando de quem era, o que significava que eu adivinhava uma singularidade própria. Aquele poema tem esse significado para vocês?
ResponderEliminarCreio que a pergunta é feita ao auditório. Levanto-me e respondo: «Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.» Um poema que começa desta forma, contendo um universo de paradoxos, tem de ter significado para quem gosta de poesia. Dos heterónimos do Pessoa, o Álvaro d Campos é o que mais me impressiona. "A Tabacaria" é uma obra única - e tem pontuação.
ResponderEliminarQuando a li ainda não tinha maturidade para a ler. Vou voltar.
ResponderEliminarEstá tudo no texto, mas gostava de realçar que o grande contributo para a evolução no sentido da hominização foi o aparecimento do polegar oponível aos outros dedos que deu origem ao trabalho e ao consequente desenvolvimento do cérebro. Aquele polegarzinho teve um grande papel na História. E lá vamos ter à poesia.
ResponderEliminarSem dúvida, Augusta. Este é um digest, um abregé, um breviário, de um texto que publiquei em livro, anos atrás. O Thomson referia o pormenor do polegar, eu não deixava de falar nisso, e agora, ao cortar mais de 90% desse texto esse importantíssimo pormenor ficou na parte cortada. Obrigado Augusta.
ResponderEliminarNão fugi à questão sobre se li ou não "A Tabacaria". Pois, não li, confesso. Prometo ir ler, até está aqui à mão. Já fiz ontem o meu acto de contrição em relação à poesia. Vamos ver quantos pai-nossos e avé-marias me calham em penitência. O Michel Foucault dizia que o divã do psiquiatra tinha substituído o confessionário do padre.Mas, por favor, não me mandem ao psiquiatra por não ter lido a "Tabacaria".
ResponderEliminarDe forma nenhuma. Alguem me disse " perceber de música é ouvi-la, sonhar com ela,emocionar-se até às lágrimas.Para a música não interessa nada saber se Beethoven era ou não surdo" Eu levo longe demais esta afirmação, mas só leio o que gosto, sem ordem e muito pouco critério. Esta, a Tabacaria, chegou-me cedo demais.
ResponderEliminarEu, também, há livros que li cedo demais e que, por isso, vou ser obrigada a reler. Há outros que só li recentemente e ainda bem. Quem sabe se não os deveria voltar a ler antes de morrer...
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