Paulo Melo Lopes
Pelas grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, a mãe de Krief olha agora o céu de um Outubro castanho. Há um sorriso muito bonito a bailar-lhe nos lábios e as pálpebras transmitem a serenidade da contemplação. Subitamente, grita: KRIEF! E pára. De novo: o sorriso: o sorriso da mãe de Krief imita a tranquilidade das folhas de Outubro e saudosamente acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos de Krief. Opções viáveis: Frio> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos frios de Krief; Morte> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos mortos de Krief; Mármore> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos marmóreos de Krief.
Do outro lado do muro, aquele que separa o Hospital de Saint Exupéry, em Paris, do resto do mundo, o pequeno Krief é amamentado por uma gorda loira sentada na cama de um anexo pardacento. A loira chama-se Nougete; veste espartilho vitoriano e fuma cigarretes brancas através de uma boquilha oferecida pelo conde Henri de Vicariate, assim ele se apresentou. Disse-lhe o conde numa noite de lua cheia, passeando os dois junto ao Sena: Minha cadelinha virtuosa, a luz dos teus cabelos ilumina Paris. Nougete sorriu. Henri de Vicariate pigarreou. Nougete olhou-o amorosamente. Henri de Vicariate cofiou o bigode. Nougete desejou, olhando as estrelas, a eternidade do momento. Henri de Vicariate afinou a voz e trauteou La vie en rose. Nougete desejou fervorosamente um filho de Henri de Vicariate. Henri de Vicariate tropeçou e caiu ao Sena; veio a salvar-se agarrando-se a um barco de recreio. Nougete não mais o viu. Henri de Vicariate não mais a procurou.
No Hospital de Saint Exupéry, em Paris, a mãe de Krief abre o caderno e anota:
Qual das dores a maior: perder o filho que se teve ou não perder o filho que não se teve?
PERGUNTA DE FUNDO: em que altura da história dos homens se transformou a dor em sofrimento?
Na cama do anexo pardacento, Krief alimenta-se sofregamente nas mamas de Nougete - as mamas de Nougette são como cascos de navio.
250 metros a norte, um homem encontra o seu destino. Corre para casa, enche a banheira de água fria e tenta afogar-se. Falha estupendamente. Esse homem é Henri de Vicariate.
À primeira pergunta só pode dar resposta quem passou pelas duas situações. À segunda, a de fundo, não sei mesmo se alguém poderá responder, eu que não estou minimamente seguro de que tal passagem tenha ocorrido durante a história dos homens. Se não te importas, Paulo, e acompanhando as minhas boas vindas ao Estrolábio, devolvo-te as duas perguntas. Primeiro para saber se as fazes porque para elas também tu não tens resposta. Segundo para saber, no caso de não ter sido esse o teu propósito, me podes transmitir as tuas ideias sobre o assunto. Acredito, porém, que haja acima de tudo uma intenção literária no teu conto e que o jogar às escondidas com o leitor esteja envolvido no gozo da escrita. Desculpa estas intromissões, até porque eu não acho que tudo tenha de ser explícito ou revelador. Eu gosto muito de empadão. Mas a tua escrita seduz e eu tenho esta vontade não necessariamente de perceber mas de poder sentir o melhor que me for dado o que está nos bastidores das palavras. Um abraço.
ResponderEliminarNão perder o filho que não se teve. Terrível pergunta. Não respondo a esta nem às outras (para mim são três). É, realmente o que não está à vista que me alicia nos teus textos.
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ResponderEliminarMarcos, eu também gosto muito de empadão. E um dos principais gozos da escrita é encontrar leitores que queiram jogar às escondidas com o autor. Nem sempre tenho respostas às questões que coloco: logo será, muitas vezes, um jogo às escondidas em que ambos, leitor e autor, estão de olhos vendados; tal apenas significa que estou a desenvolver os conceitos internamente, de forma a criar uma resposta para mim. Obviamente, a tua pergunta forçou-me a amadurecer respostas com alguma celeridade; eis as que encontrei:
ResponderEliminarQual das dores a maior: perder o filho que se teve ou não perder o filho que não se teve?
Não há correspondência directa entre a dor (o mais correcto seria grafar sofrimento) e o evento que a desencadeou, já que a dor (enquanto sofrimento) é um constructo social, como tal permeável e variável às condições culturais. Também não consigo discernir a diferença entre perder um filho que se teve (real, com um imaginário associado) e não ter a oportunidade de perder um filho que nunca se teve (imaginado), já que a mente opera sobretudo através de imagens mentais. Como dizes, só pode dar resposta quem passou pelas duas situações.
PERGUNTA DE FUNDO: em que altura da história dos homens se transformou a dor em sofrimento?
Foi, creio, o evento da subjectividade que transformou a dor (apenas física) em sofrimento (consciência de dor; correlato mental que se afastou da dor física, podendo manifestar-se sem a sua presença). Confesso que não saberei responder quando tal transformação terá surgido na história dos homens, e suspeito que ninguém o saiba ao certo; calculo eu que terá sido quando a Natureza resolveu reunir no mesmo corpo o cérebro de um primata e o aparelho vocal de um papagaio, o que permitiu a explosão da linguagem e a criação insidiosa de, também, uma linguagem interna, que viria a resultar no pensamento, e depois no pensamento do pensamento (ou consciência).
Enfim, espero ter criado bastidores ainda maiores.
Abraço.
Não. Não criaste e eu tenho de te pedir desculpa pela exortação a um exercício condicionador do teu normal desenvolvimento interno de conceitos. Dito de outro modo, os bastidores são teus, na medida em que tu os quiseres assim. A minha curiosidade resulta exactamente do desejo de correspondência entre o apelo emocional da tua escrita em mim e a minha compreensão da sua razão de ser. Um desejo atávico, claro, como todos os desejos, no limite. Dirás tu, porventura, e acertadamente, que eu ainda procuro ligar fios que estão ligados desde sempre. Às vezes acontece-me isso. Felizmente, é só às vezes. Desta vez, foste tu o alvo. Agradeço a gentileza e a generosidade de "trabalhares" a meu mando, sem remuneração outra que a satisfação, no fundo dos fundos, da face vampírica de um tipo que, julgo poder dizer-te, até não é mau. Aprendi contigo e isso é que conta. Fico a dever-te um empadão.
ResponderEliminarNão existe, julgo, um normal desenvolvimento interno de conceitos, como houvesse alguma forma de destino a cumprir; é um exercício feito a partir de apelos e necessidades e prazeres e acasos. Bom, e ainda que não haja remuneração, resta um empadão. Afinal de contas, de uma maneira ou de outra, todos somos vampiros, se por isso se traduz a procura do(s) sentido(s) das coisas.
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