Sociólogo, Boaventura de Sousa Santos é um dos universitários portugueses com maior reconhecimento académico e científico dentro e fora do país, desenvolvendo investigação em temas como a democracia, interculturalidade, globalização e direitos humanos. Fundou e dirige o Centro de Estudos Sociais da UC. Em entrevista, aponta rumos a Coimbra e ao país. O retrato que faz da Europa é demolidor.
P – Acabado de jubilar, a sua ligação à Universidade de Coimbra (UC) prossegue ainda pela via da investigação, no CES e no Centro de Documentação 25 de Abril. Sendo uma das suas personalidades de referência, dentro e fora do país, lamenta nunca ter concorrido à reitoria da UC?
R – Não lamento porque, se tivesse concorrido ao lugar e tivesse ganho as eleições, interromperia a minha atividade científica no país e no estrangeiro, a minha maior prioridade desde sempre. Nas instituições que ajudei a criar, como o CES e o CD25, construi equipas e modos de gestão que obrigaram a trabalho muito intenso mas não afetaram significativamente o meu trabalho científico de que afinal todas os meus colaboradores e colaboradoras beneficiaram. O CES é hoje uma instituição científica de renome internacional, uma boa parte dos nossos estudantes de doutoramento são estrangeiros e temos um corpo de investigadores igualmente internacionalizado. Temos uma sede em Lisboa e foram criadas duas instituições irmãs com quem colaboramos fraternalmente, o CES-América Latina (sediado no Brasil) e o CES-Aquino de Bragança (sediado no Maputo). O CD25 é uma instituição que honra a Universidade e o país pelo profissionalismo e pela isenção com que acolhe e trata a documentação sobre o acontecimento mais importante da nossa contemporaneidade, a Revolução do 25 de Abril.
P – Quais são hoje os grandes desafios que se colocam à UC, em Portugal e no mundo, particularmente nos países de língua portuguesa?
R – A UC não aproveitou como devia e quando devia a energia libertadora criada pelo 25 de Abril. Durante demasiado tempo viveu das glórias do passado e deixou-se iludir pela armadilha da história. Quando se deu conta de que tinha sido ultrapassada por outras universidades (algumas delas criadas por antigos professores de Coimbra que aqui não encontraram espaço para a sua criatividade), não só no plano científico como no plano de influência pública como ainda na capacidade para atrair os melhores alunos, os tempos eram de vacas magras e o arrocho orçamental impediu que as mudanças pudessem recuperar o tempo perdido. A adaptação ao processo de Bolonha deu-se nas piores condições, com pouca visão estratégica e sem capacidade para transformar o nosso único recurso – o sermos uma das mais antigas universidades da Europa – numa alavanca de transformação da tradição em inovação. Assombrados pela culpa histórica do colonialismo não soubemos transformar o espaço de língua oficial portuguesa no espaço por excelência da expansão da universidade onde muitas das elites pós-coloniais tinham sido formadas. Esperámos que elas viessem ter connosco enquanto o Brasil adotava uma política ativa e muito bem financiada de cooperação com os PALOP. Os desafios hoje são enormes porque estamos integrados num sistema universitário europeu onde seremos certamente periféricos. Temos de valorizar tudo o que temos, que é muito, em termos de capacidade científica instalada; temos de acarinhar as práticas científicas e os centros de investigação que nos prestigiam no mundo; temos de superar a estúpida rivalidade entre a universidade e a cidade e fazer de Coimbra a cidade do mundo que mais investe na sua universidade e, do mesmo passo, fazer da Universidade de Coimbra a universidade do mundo que mais recursos traz para a cidade onde está sediada. Unidas, Coimbra e a Universidade podem aspirar a alguma presença mundial. Separadas, estão condenadas ambas à mediocridade provinciana. O regresso da Universidade ao coração da cidade, ao Colégio da Graça, em que o reitor Seabra Santos tanto se tem envolvido, pode ser o augúrio mais promissor de uma nova simbiose Universidade – Cidade. Temos de transformar cada diretor e cada professor num embaixador ou numa embaixadora da UC no Brasil e nos PALOP. Temos de ir buscar aí a vantagem comparativa para nos transformarmos na universidade europeia que traz para dentro da Europa uma parte cada vez mais significativa do mundo. Só essa vantagem comparativa nos livrará da marginalização total no seio do sistema universitário europeu.
P – Em Coimbra, os movimentos cívicos, que tiveram em Boaventura de Sousa Santos um grande impulsionador, sobretudo no Conselho da Cidade e na Pro-Urbe – que, recorde-se, assumiram lutas como a da co-incineração – esvaziaram-se nos últimos anos. A que se deve tal situação?
R – Dediquei a Coimbra a maior parte da minha atividade cívica durante muitos anos. Perdi todas as lutas em que me envolvi na cidade que me viu nascer e que muito amo. Perdi a luta contra a eliminação dos carros elétricos, perdi a luta contra a demolição do Teatro Avenida, perdi a luta contra a amputação e abandono do Choupal, perdi em boa parte a luta contra a co-incineração, perdi a luta pela criação de instrumentos de democracia participativa no governo municipal, e sobretudo perdi a luta contra a especulação urbana, a corrupção dos serviços, a distração do MP e da Polícia Judiciária, a apatia dos tribunais que no conjunto deixaram criar a monstruosidade urbana que domina a cidade e onde se chegou ao cúmulo do mau gosto ao aprovar-se um projecto arquitétonico de centro comercial na colina oposta à Universidade, imitando grotescamente o seu perfil. Quando eu e o Dr. Carlos Encarnação andávamos juntos na luta contra a co-incineração, e eu desabafei que era escandalosa a promiscuidade entre os interesses imobiliários e o PS, o Dr. Encarnação respondeu-me com total candura “Oh Professor Boaventura, o problema é que no meu partido as coisas não são melhores”. Os anos seguintes vieram a confirmar que o Dr. Encarnação sabia do que estava a falar. Inicialmente lutei como indivíduo. Tendo chegado à conclusão que individualmente e sem querer concorrer a lugares de governo autárquico pouco lograria, decidi promover a criação da Pro-Urbe que durante anos animou o debate urbano. Os resultados não foram muito melhores. As lealdades partidárias acabaram por liquidar o impulso da democracia de base.
P – Encontra uma relação de causa-efeito entre esse esvaziamento de participação cívica e a acentuada perda de relevo de Coimbra – cidade e comunidades académica, política, cultural –, no contexto nacional?
R – Tal como aconteceu com a universidade, o 25 de Abril foi uma oportunidade perdida pela cidade. A cidade continuou a esperar que o governo nacional trabalhasse para ela, tal como acontecera na ditadura. Nem sequer reparou que a cumplicidade da cidade (e da universidade) com o regime de Salazar tinham criado uma certa animosidade nacional contra a cidade. Ao longo dos anos foi-se dando conta da marginalização e do desinvestimento e não soube reagir. Paralelamente, à medida que os anos passaram , a presença nos governos de políticos oriundos de Coimbra foi rareando e a influência mediática dos professores de Coimbra foi desaparecendo. Na cidade tudo passou a durar décadas para ser conseguido, de espaços para congressos a metros urbanos e suburbanos. A imagem mais patética da perda de relevo da cidade é o “apeadeiro” de Coimbra-B. Pode Coimbra aspirar a ter importância no futuro quando os visitantes ao descer dos comboios recuam um século?
P – Coimbra – cidade da cultura, do conhecimento, da inovação, diz-se –, parece ainda não ter assumido um caminho. Que caminho defende para a sua cidade no século XXI?
R – Autarcas inovadores, serviços tecnicamente competentes e não corruptos, a opção estratégica por uma cidade-universidade, centrada na qualidade de vida, nos espaços verdes e pedonais, na harmonia visual das paisagens urbanas, na revitalização do centro histórico e do comércio urbano que transporta a memória da cidade, nos transportes públicos de qualidade. Uma cidade que sabe aliar atividades de promoção científica às artísticas e musicais, à valorização da gastronomia tanto do centro como do espaço da lusofonia. Uma cidade que não figure nos manuais de urbanismo como um exemplo de más práticas, onde não é possível o absurdo urbano dos Jardins do Mondego.
P – Nesta nova etapa da sua vida académica, assumiria uma experiência política concreta com uma candidatura à Câmara Municipal
R – No tempo da Pro-Urbe os meus críticos sempre me acusaram de querer usar a associação como trampolim para o governo municipal. Fui-os desiludindo.
P – Olhemos agora o país e a Europa. Enquanto sociólogo – logo observador privilegiado – que análise lhe merece o desvario financeiro e económico, que, desde logo, implica o social, em que o espaço europeu está mergulhado?
R – A crise é grave porque os que a produziram (o capital financeiro) são quem está a ditar a sua “solução”. Sem regulação dos mercados financeiros caminharemos todos para o desastre, primeiro o Sul da Europa e depois o Norte da Europa. Países com economias fracas integradas num sistema de moeda forte e sem a capacidade (nem a vontade) dos governos para tomar medidas que animem o investimento e criem emprego caminharão para a estagnação económica, o aumento do desemprego, o empobrecimento geral. Há de haver um momento em que os cidadãos se sentirão abandonados pelos seus dirigentes e reagirão. Se a reação for pacífica, como espero, e for acompanhada por outras reações do mesmo teor um pouco por toda a Europa, talvez os dirigentes europeus acordem para a realidade: não é justo que tantos sofram para que uns poucos continuem a enriquecer escandalosamente; não é justo que as dificuldades de um país sejam motivo de especulação para os abutres financeiros e se agravem sem limite só porque não há limite para a voragem da especulação.
P – As consequências sociais das duras medidas de austeridade a que os mercados obrigam os Estados “incumpridores” começam a apresentar-se em toda a extensão. O que é que os portugueses podem esperar do futuro próximo?
R – Se os mercados financeiros não forem regulados, os bancos não sentirem a ameaça de nacionalização, se continuarem a especular com a miséria dos cidadãos, se a UE continuar a mostrar que está refém da lógica do FMI, que é a lógica dos interesses dos credores e não dos interesses dos devedores, os portugueses só podem esperar o empobrecimento coletivo no futuro próximo.
P – No plano nacional, qual a melhor solução política – pressupondo as eleições presidenciais e uma previsível mudança governativa – para atravessar a crise presente?
R – No país com um dos maiores índices de desigualdade social da Europa é perigoso pensar que a política de austeridade deve ser conduzida com o extremismo que os chamados mercados financeiros exigem. Podemos caminhar para uma convulsão social e para a evitar são necessários dirigentes que saibam dizer basta(!) às exigências financeiras quando elas significam a ruína da grande maioria das famílias portuguesas. Precisamos de um novo nacionalismo democrático, solidário e de esquerda na base de um governo que tenha a ousadia de mostrar aos dirigentes europeus que, não sendo possível avançar para o federalismo europeu, tão pouco é possível imaginar que os portugueses vão tolerar que a sua economia não cresça anos a fio e que os portugueses continuem a empobrecer enquanto os irmãos alemães não sabem onde aplicar o excesso do dinheiro que têm. Tudo isto com a ficção que pertencemos à casa comum da União Europeia. Para criar uma governação deste tipo, Manuel Alegre está mais próximo do objetivo que Cavaco Silva ou Fernando Nobre, uma aliança entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista está mais próxima deste objetivo que uma aliança do PS com o PSD e o PP.
P – Apesar da crise ou para além dela, Portugal continua a confrontar-se com falhas graves e estruturais a diversos níveis. A educação é um deles. A justiça é outro. Mas também o seu sistema político e um Estado que cresceu para dentro ignorando cada vez mais os cidadãos. Em primeiro lugar, o que fazer relativamente à educação?
R – No meio da crise o país tem sabido continuar a dar prioridade à investigação científica e isso não é pouca coisa. Mas, contraditoriamente, o Governo não tem sabido reconhecer que a investigação não se faz sem investigadores e que estes durante muitos anos continuarão a vir das universidades portuguesas. Para isso os professores não podem ser proletarizados pelos excessos de trabalho docente e desestimulados com reduções de salários e carreiras fechadas. A todos os níveis o investimento na educação tem de ser prioritário num país que perdeu quase meio século nesse como noutros domínios. Mas a educação tem de ter uma orientação estratégica e esta não pode limitar-se a conceções estreitas de cultura científica. Um país pequeno às portas da Europa tem de promover uma educação para o cosmopolitismo e para a interculturalidade. Um país com pouca cultura democrática tem de promover uma educação para a cidadania e a democracia.
P – E o sistema político versus Estado?
R – Alterar o sistema eleitoral de modo a tornar os deputados mais diretamente vinculados aos que neles votam. Reformar o sistema de financiamento dos partidos de modo a evitar a captura do sistema político pelos interesses económicos. Promover mais mecanismos de democracia direta desde referendos a consultas, à revogação de mandatos, às leis de iniciativa cidadã, como o brilhante exemplo da Lei da Ficha Limpa no Brasil. Articular mais e mais a democracia representativa com a democracia participativa e deliberativa. Estimular a sociedade civil a organizar-se em defesa de formas mais intensas de democratização. Encontrar mecanismo para promover o maior pluralismo no comentário político nacional hoje dominado por comentadores conservadores. Democratizar os meios de comunicação social. Defender eficazmente os jornalistas da redução do seu nobre trabalho à fabricação de conteúdos. Democratizar a sociedade (da família à escola e às empresas) como parte integrante de democratização do sistema político. Enquanto só o sistema político for democrático e a sociedade continuar a ser regulada no seu quotidiano por pequenos e grandes despotismos não haverá verdadeira democracia.
P – Relativamente à justiça – matéria em relação à qual tutela um observatório permanente –, quais são as grandes questões a que o país tem de dar resposta sob pena da ineficácia e descredibilização total?
R – Criar uma nova cultura judiciária através de um investimento forte na formação de magistrados. Uma cultura que faça de cada operador judicial um defensor e promotor responsável da democracia. Investir na gestão dos tribunais, um dos serviços do Estado mais mal geridos. Tornar a justiça acessível aos cidadãos baixando os custos e alterando o sistema de patrocínio judiciário. Levar adiante reformas importantes na área do mapa judiciário (a distribuição territorial dos serviços judiciais). Mudar os sistemas informáticos de modo a garantir a compatibilidade entre serviços e o uso fácil pelos cidadãos. Criar um clima de responsabilização democrática que leve às lideranças institucionais e profissionais dirigentes com sentido de Estado e com capacidade de articulação com os diferentes corpos que constituem o mundo judiciário. Criar uma nova relação entre sistema judiciário e meios de comunicação social.
P – Boaventura de Sousa Santos tem uma família toda ligada ao mundo científico. À ciência social igualmente a sua esposa – Maria Irene Ramalho – e às ciências bioquímicas os seus dois filhos – João e Miguel Ramalho Santos. Convivem harmoniosamente estes dois mundos?
R– Temos muito em comum. Por exemplo, o termos todos interesses literários e sermos mesmo criadores literários com obra publicada.
(Entrevista concedida ao Diário As Beiras, em 20 de Novembro de 2010)de Coimbra em 2013?
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
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