O Natal para os que não têm Natal.
É costume enviar cartões de boas festas aos amigos, aos clientes, aos superiores e aos inferiores. Os meus vão para aqueles com quem me sinto solidário:
1. Os doentes da Sida, sobretudo em África, congratulando-me com o acordo estabelecido na África do Sul entre as multinacionais farmacêuticas e o movimento de luta contra a Sida. A partir de agora as empresas de genéricos podem produzir os medicamentos antiretrovirais e exportá-los para 47 países da África subsahariana. Os medicamentos que há pouco custavam 10.400 dólares por doente e por ano, passarão a custar 140 dólares. E mesmo assim muitos Estados vão precisar de apoio internacional.
2. As mulheres portuguesas que continuam a ser estigmatizadas nos tribunais e na opinião pública por terem praticado o aborto e para todas as mulheres e homens que lutam pela descriminalização. O crime do aborto é um dos sintomas mais deletérios da hipocrisia nacional sustentado pela santa aliança entre uma Igreja conservadora e um dos parlamentos mais machistas do mundo. Congratulemo-nos com o facto de a própria Igreja estar a dar sinais de que há limites para a misoginia.
3. O Governo do PT no Brasil e sobretudo a sua diplomacia que descobriu o potencial internacional do Brasil para a construção de um mundo melhor, obrigando os países ricos a confrontar a sua insinceridade quando impõem a abertura dos mercados aos países pobres e fecham os seus. Será que este potencial não pode ser orientado para dentro da sociedade brasileira e frutificar numa política que torne o Brasil numa sociedade mais justa como consta do programa do PT? Mas a minha solidariedade vai também para os quatro parlamentares que acabam de ser expulsos do partido. Tratou-se de uma medida injusta, desnecessária e contrária à história de um partido que desde a sua fundação soube acomodar facções e tendências como nenhum outro partido de esquerda.
4. Os iraquianos que não tiveram a sorte da Alemanha ou do Japão no final da segunda guerra mundial. Entre um ditador sem escrúpulos e os libertadores que o derrotam e humilham sem escrúpulos, a alma de um povo é arrasada até ficar para além da esperança e da dignidade. Da ocupação ao caos vai o caminho que conduz da violência da democracia à democracia da violência.
5. Os povos indígenas e afro-descendentes de Cacarica, na região do pacífico colombiano, junto ao Panamá, que viram as suas terras roubadas e as suas aldeias massacradas, quando os criadores de gado, a agro-indústria e os traficantes de droga se "interessaram" pelas suas riquezas e trouxeram consigo os senhores da guerra. Uma solidariedade muito especial pela luta notável de resistência que souberam organizar sob o lema "Somos terra desta terra".
6. Os mais de 150.000 doentes crónicos de Bhopal, intoxicados pela fuga de gás da fábrica de pesticidas da Union Carbide em 2 de Dezembro de 1984, que receberam uma escassa indemnização de 400 a 580 Euros, que não cobre mais que cinco anos de despesas médicas. Continuam a morrer à razão de dez por mês.
7. As crianças de Ramallah que aprenderam a fazer brinquedos com os destroços das casas arrasadas pelos tanques e bulldozers israelitas e vivem cercados de arame farpado e de check points donde só sai com passes difíceis de obter e de duração limitada. Vivem muito pior que os negros sob o apartheid, enquanto a União Europeia discute se a herança cristã deve constar da Constituição.
8 Os imigrantes ilegais em Portugal e no resto do mundo rico que fogem da fome e do desespero para vir viver no medo, na exploração, na precaridade e, às vezes, na fome e no desespero.
(Publicado na revista Visão em 31 de Dezembro de 2003)
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
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