Esta pergunta pode parecer estranha e muitos pensarão que a formulação inversa talvez fizesse mais sentido: por que é que a esquerda se transformou num problema difícil para Cuba? De facto, o lugar da revolução cubana no pensamento e na prática de esquerda ao longo do século XX é incontornável. E é-o tanto mais quanto o enfoque incidir menos na sociedade cubana, em si mesma, e mais no contributo de Cuba para as relações entre os povos, tantas foram as demonstrações de solidariedade internacionalista dadas pela revolução cubana nos últimos cinquenta anos. É possível que a Europa e a América do Norte fossem hoje o que são sem a revolução cubana, mas já o mesmo se não pode dizer da América Latina, da África e da Ásia, ou seja, das regiões do planeta onde vive cerca de 85% da população mundial. A solidariedade internacionalista protagonizada por Cuba estendeu-se, ao longo de cinco décadas, pelos mais diversos domínios: político, militar, social e humanitário.
O que é “esquerda” e o que é “problema difícil”?
Apesar de tudo, penso que a pergunta a que procuro responder neste texto faz sentido. Mas antes de tentar uma resposta, são necessárias várias precisões. Em primeiro lugar, a pergunta pode sugerir que foi apenas Cuba que evoluiu e se tornou problemática ao longo dos últimos cinquenta anos e que, pelo contrário, a esquerda que a interpela hoje é a mesma de há cinquenta anos. Nada mais falso. Tanto Cuba como a esquerda evoluíram muito neste meio século e são os desencontros das suas respectivas evoluções que criam o problema difícil. Se é verdade que Cuba procurou activamente mudar o cenário internacional de modo a tornar mais justas as relações entre os povos, não é menos verdade que os condicionamentos externos hostis em que a revolução cubana foi forçada a evoluir impediram que o potencial de renovação da esquerda que a revolução detinha em 1959 se realizasse plenamente. Tal facto fez com que a esquerda mundial se renovasse nos últimos cinquenta anos, não com base no legado da Revolução Cubana, mas a partir de outros referentes. A solidariedade internacional cubana manteve assim uma vitalidade muito superior à solução interna cubana.
Em segundo lugar, devo precisar o que entendo por “esquerda” e por “problema difícil”. Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações económicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efectivo exercício da liberdade. A essa sociedade alternativa foi dado o nome genérico de socialismo. Defendo que para esta esquerda, cuja teoria e prática evoluiu muito nos últimos cinquenta anos, Cuba é hoje um “problema difícil”. Para a esquerda que eliminou do seu horizonte o socialismo ou o pós-capitalismo, Cuba não é sequer um problema. É um caso perdido. Dessa outra esquerda não me ocupo aqui.
Por “problema difícil” entendo o problema que se posiciona numa alternativa a duas posições polares a respeito do que questiona, neste caso, Cuba. As duas posições rejeitadas pela ideia do problema difícil são: Cuba é uma solução sem problemas; Cuba é um problema sem solução. Declarar Cuba um “problema difícil” para a esquerda significa aceitar três ideias: 1) nas presentes condições internas, Cuba deixou de ser uma solução viável de esquerda; 2) os problemas que enfrenta, não sendo insuperáveis, são de difícil solução; 3) se os problemas forem resolvidos nos termos de um horizonte socialista, Cuba poderá voltar a ser um motor de renovação da esquerda, mas será então uma Cuba diferente, construindo um socialismo diferente do que fracassou no século XX, e, desse modo, contribuindo para a urgente renovação da esquerda. Se não se renovar, a esquerda nunca entrará no século XXI.
A resistência e a alternativa
Feitas estas precisões, o “problema difícil” pode formular-se do seguinte modo: Todos os processos revolucionários modernos são processos de ruptura que assentam em dois pilares: a resistência e a alternativa. O equilíbrio entre eles é fundamental para eliminar o velho até onde é necessário e fazer florescer o novo até onde é possível. Devido às hostis condições externas em que o processo revolucionário cubano evoluiu – o embargo ilegal por parte dos EUA, a forçada solução soviética nos anos setenta, e o drástico ajustamento produzido pelo fim da URSS nos anos noventa – esse equilíbrio não foi possível. A resistência acabou por se sobrepor à alternativa. E, de tal modo, que a alternativa não se pôde expressar segundo a sua lógica própria (afirmação do novo) e, pelo contrário, submeteu-se à lógica da resistência (a negação do velho).
Deste facto resultou que a alternativa ficou sempre refém de uma norma que lhe era estranha. Isto é, nunca se transformou numa verdadeira solução nova, consolidada, criadora de uma nova hegemonia e, por isso, capaz de desenvolvimento endógeno segundo uma lógica interna de renovação (novas alternativas dentro da alternativa). Em consequência, as rupturas com os passados sucessivos da revolução foram sempre menos endógenas que a ruptura com o passado pré-revolucionário. O carácter endógeno desta última ruptura passou a justificar a ausência de rupturas endógenas com os passados mais recentes, mesmo quando consabidamente problemáticos.
Devido a este relativo desequilíbrio entre resistência e alternativa, a alternativa esteve sempre à beira de estagnar e a sua estagnação pôde ser sempre disfarçada pela continuada e nobre vitalidade da resistência. Esta dominância da resistência acabou por lhe conferir um “excesso de diagnóstico”: as necessidades da resistência puderam ser invocadas para diagnosticar a impossibilidade da alternativa. Mesmo quando factualmente errada, tal invocação foi sempre credível.
O carisma revolucionário e o sistema reformista
O segundo vector do “problema difícil” consiste no modo especificamente cubano como se desenrolou a tensão entre revolução e reforma. Em qualquer processo revolucionário, o primeiro acto dos revolucionários depois do êxito da revolução é evitar que haja mais revoluções. Com esse acto começa o reformismo dentro da revolução. Reside aqui a grande cumplicidade – tão invisível quanto decisiva – entre revolução e reformismo. No melhor dos casos, essa complementaridade é conseguida por uma dualidade – sempre mais aparente que real – entre o carisma do líder, que mantém viva a permanência da revolução, e o sistema político revolucionário, que vai assegurando a reprodução do reformismo. O líder carismático vê o sistema como um confinamento que lhe limita o impulso revolucionário e, nessa base, pressiona-o à mudança, enquanto o sistema vê o líder como um fermento de caos que torna provisórias todas as verdades burocráticas. Esta dualidade criativa foi durante alguns anos uma das características da Revolução Cubana.
Com o tempo, porém, a complementaridade virtuosa tende a transformar-se em bloqueio recíproco. Para o líder carismático, o sistema, que começa por ser uma limitação que lhe é exterior, passa com o tempo a ser a sua segunda natureza e, com isso, passa a ser difícil distinguir entre as limitações criadas pelo sistema e as limitações do próprio líder. O sistema, por sua vez, sabe que o êxito do reformismo acabará por corroer o carisma do líder e auto-limita-se para que tal não ocorra. A complementaridade transforma-se num jogo de auto-limitações recíprocas. O risco é que, em vez de desenvolvimentos complementares, ocorram estagnações paralelas.
A relação entre carisma e sistema tende a ser instável ao longo do tempo e isso é particularmente assim em momentos de transição.1 O carisma, em si mesmo, não admite transições. Nenhum líder carismático tem um sucessor carismático. A transição só pode ocorrer na medida em que o sistema toma o lugar do carisma. Mas, para que tal suceda, é preciso que o sistema seja suficientemente reformista para lidar com fontes de caos muito diferentes das que emergiam do líder. A situação é dilemática sempre e quando a força do líder carismático tenha objectivamente bloqueado o potencial reformista do sistema. Este vector do “problema difícil” pode resumir-se assim: o futuro socialista de Cuba depende da força reformista do sistema revolucionário; no entanto, tal força é uma incógnita para um sistema que sempre fez defender a sua força da força do líder carismático. Este vector da dificuldade do problema explica o discurso de Fidel na Universidade de Havana em 17 de Novembro de 2005.2
As duas vertentes do “problema difícil” – desequilíbrio entre resistência e alternativa e entre carisma e sistema – estão intimamente relacionadas. A prevalência da resistência sobre a alternativa foi simultaneamente o produto e o produtor da prevalência do carisma sobre o sistema.
(Continua)
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
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Muito se aprende com este inteligentíssimo artigo. Não admira: Boaventura de Sousa Santos dá-nos sempre grandes lições.
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