sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Guilherme de Azevedo(1839-1882) - III

Fialho de Almeida
Carlos Loures

(Continuação)


O estilo de Guilherme de Azevedo dobra-se com admirável flexibilidade a todos os caprichos da fantasia; de sorte que, dado o facto sobre o qual o artigo tem de ser bâclé para o jornal do dia seguinte, ele arranca-lhe de dentro em cinco tiras de papel tudo o que se lhe pedir: cabriolas, guinchos, métodos científicos, carrancas de palhaço, religiões, filosofias, buca-pés, baba de tigre, teorias de arte, formas de governo, bandeirolas, blasfémias ou pastilhas. Exercendo uma considerável força de crítica e de mordacidade sobre os compadrios caturras da sociedade de Lisboa, ele nunca teve inimigos. Quando há meses partiu para Paris, onde presentemente reside, li eu num jornal que vinte e três dos seus amigos tinham ido dizer-lhe adeus. Vinte e três amigos, para um homem que não tem pelo menos dois ou três ministros fechados em cada mão, parecce-me ser o mais expressivo elogio que se pode fazer à bonomia de um malicioso. E esse elogio, Guilherme de Azevedo merece-o mais que ninguém, porque nunca a fibra belicosa de um mais arrogante sapador revestiu o coração ingénuo de um melhor rapaz.» Este texto lavrado num registo encomiástico serve de contrapeso á descrição, talvez realista, mas ácida de Fialho de Almeida, nas páginas que, no número 40 de Os Gatos, dedica ao escritor santareno.

(Excerto da biografia publicada pelo autor em "Vidas Lusófonas")

Paris

Para além das crónicas que foi enviando, não existem muitas referências ao que terá sido o percurso dos dois anos que Guilherme viveu em Paris. Correspondente telegráfico e literário da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, recebe por essa incumbência mil francos por mês, não estando contudo impedido de colaborar nos jornais de Lisboa e Porto. Por isso, não terá tido grandes dificuldades económicas. Habita numa sobreloja, num entresol, do boulevard Saint Germain, em frente do Teatro Cluny. À partida, sonhara ir ali, na Meca do chic (como diz Fialho), produzir finalmente a sua «grande obra».

Em A Alma Nova, Lisboa, «a cortesã devassa», não é mais do que a correspondência autóctone e possível à grande e tentacular metrópole dos versos de Baudelaire, de Hugo, de Lamartine – Portugal é, no dizer de Eça, «um país traduzido do francês em vernáculo»; por consequencia, Lisboa, provinciana e atrasada, é, apesar de tudo, aquilo que de mais parecido temos com uma grande cidade. Mas agora, nada de imitações – Guilherme está no coração da civilização, na fonte de todas as misérias, de todas as opulências: está em Paris.

Tudo indica, porém, que o sonho vai sendo adiado - vagabundagens, hábitos de café, prostitutas, as noites perdidas em cavaqueiras estéreis ou nos teatrinhos de boulevard... A «grande obra» vai ficando sempre para «amanhã». As crónicas obrigatórias de cuja escrita depende economicamente, são sempre alinhavadas à última hora, escritas de um jorro, uma vez que já as tem pensadas de antemão - não são sequer emendadas, pois, impaciente, o paquete espera que ele termine, para ir correndo levá-las ao telégrafo.

Gaba-se de nunca ler nada para preparar os seus escritos – segundo diz, tudo lhe surge na mente já acabado (depois, saber-se-á que assim não é – quando adoece, os amigos descobrem-lhe apontamentos, revistas francesas sublinhadas... fontes de consulta, enfim. O que está longe de ser um crime, mas que, apesar de tudo, ele esconde como se de um crime se tratasse). Um dia de Março de 1882, indo avisá-lo de que haviam chegado uns amigos de visita, a porteira dá com ele desmaiado, vítima de uma síncope.

Ao despi-lo, os amigos descobrem que todo o seu lado esquerdo está ulcerado, gangrenado. Durante seis meses, sabe-se depois, escondeu de todos o avanço da doença que começara, décadas antes, com o tumor provocado pela sua queda na infância. Ao cabo de uns dias, já em Abril, lá se deixou conduzir pelos amigos – Lino de Assunção, Bordalo e Eduardo Garrido, à Casa de Saúde Dubois.

(Continua)

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