A televisão disse: a época festiva que atravessamos fica sempre tristemente assinalada por um grande número de acidentes de viação. Marciana baixou o som e foi ver o peru. Pelo corredor, de nariz no ar, ainda distinguia o cheiro dos fritos. Detestava a comida do Natal.
Espetou o bojo do peru e ouviu a porta abrir-se e o Miguel entrar, falando com alguém. Foi recebê-los à porta da cozinha, de garfo em punho, curiosa.
- Trago aqui o Pereira para jantar connosco, mãe. Parece que não tinha para onde ir.
Num relance Marciana avaliou o vagabundo. Pensou que por mais que o limassem, mesmo esfregado e desinfectado, nunca passaria por um deles. Quando se sentaram na sala, o Pereira à ponta do sofá, de punhos rígidos assentes nos joelhos, o Miguel com os ténis em cima da mesinha de tampo de vidro, Marciana teve uma náusea, uma onda de pânico, e nem sequer estava ainda a pensar no que diria ao marido, aos irmãos e às cunhadas. Imaginava a melhor maneira de limpar a carpete e o tempo que demoraria o cheiro a lixo que o Pereira generosamente deitava a desvanecer-se no ar. Sabia que lhe tinham arrumado o jantar de Natal e não tinha ideia do que fazer a seguir.
_ Talvez o senhor Pereira queira tomar um banho, mudar de roupa. Tenho um fato do teu pai que lhe deve servir.
O Miguel achou bem e o indigente não se opôs. Assim que o homem saiu da sala onde ardia a lareira, Marciana desodorizou o ar e escovou o sofá, procurando a pulga ocasional, o piolho hediondo, outros insectos sem nome que se agarram à pobreza.
É que o Miguel, educado no mais libertino dos ateísmos, atravessava aos quinze anos uma fase de cristianismo primitivo. Já em Novembro começara os ataques à hipocrisia do espírito natalício, denunciara consumismos, acusara de cínicos pais, tios e tias, padres, professores, figuras públicas – até o Papa! – e anunciara que as coisas se iam passar de maneira diferente nesse Natal. Marciana levava o filho a sério, porque ele era um rapaz de convicções firmes, embora naturalmente pouco duradouras, que não só tomava à letra as ideias gerais como as punha em prática de forma radical. Marciana temera o pior. Receara que ele não viesse jantar com a família na véspera de Natal. Afinal o pior tinha superlativo – o Miguel aparecera acompanhado dum desconhecido que tresandava a vinho e a miséria e que apreciara, logo à entrada, com olhar excessivamente sóbrio não só a dona da casa, mas também as pratas e as porcelanas. Marciana fizera uma nota mental de reservar um espaço na semana seguinte para mandar mudar as fechaduras.
Chegavam os irmãos todos juntos e as cunhadas, brilhantes e tufadas. Marciana apresentou-lhes o Pereira sem sobressaltos e eles, habituados a uma tradição familiar de autocontrolo e pouco espalhafato, estenderam-lhe automaticamente a mão, os três de seguida, apresentando-se: Qualquer Coisa de Vasconcelos. Marciana compreendia que bichanassem o nome próprio. Ainda hoje a intrigava que o pai, de costume tão sensato e de perfil em outras matérias discreto, tivesse marcado os filhos para a vida com o ferro de um nome confuso de que Aureliano Auspicioso não era senão o mais equilibrado.
- O teu Miguel é um santo, - disse uma tia, abraçando Marciana na cozinha.
Um Cristo, disse outra. Um anjo, disse outra. Um arcanjo, troçou o tio Aureliano. Miguel entrou e pediu que fossem para a sala, que parecia mal ao Pereira. Marciana ia atrás, pelo corredor, a olhar as costas do irmão e apareceu-lhe como num ecrã a imagem dum menino negro sentado no deserto. Era uma dessas fotografias de choque que passam nas notícias à hora de jantar, mães esqueléticas com os bebés mortos no colo, crianças deitadas na terra a olhar de frente para a câmara que as filma. Marciana lembrava-se desta imagem de há dois ou três anos: é um menino muito pequeno, desorbitado de fome, que passa as mãos no rosto uma vez só, desgraçadamente, como um velho que não vê saída. Sentado no deserto ele no meio de outros, à espera de coisa nenhuma.
- Também eu tive os meus pobres quando era nova, - disse a tia Adelina, de volta à cozinha. – Ia às barracas levar latas de feijão e sacos de açúcar e coisas assim. Não me esqueço da cara de espanto que faziam quando eu aparecia carregada, à chuva, ao domingo.
- Eu levava miúdos da rua a lanchar ao café, - disse Marciana. – Mas depois a caridade já não se podia fazer. Havia uns ideais humanitários que impediam os particulares de tomar conta dos pobres, era ao Estado que competia tratar deles
- O que é que diz o Zé?
- O Zé não sabe, - respondeu Marciana.
Afinal o Zé até achou graça quando chegou a casa. Não deu importância ao olhar de dramatismo que a mulher lhe lançara à porta de entrada, ofereceu mais uma rodada ao Pereira e deu um longo abraço ao filho. Era evidente que já tinha estado a celebrar com os amigos da vela.
A televisão disse: devido ao adiantado da hora este período noticioso será mais breve que o usual. Mostraram distúrbios de rua um motim, algures no mundo. Marciana teve um arrepio: aquele menino sentado no deserto podia ser o dela; ela podia, ao acaso, sem razão, ter nascido destinada àquele deserto.
- Temos de sofrer imagens horrorosas, - disse, impaciente. – Põem-nos os problemas à frente e não nos dão os meios para os resolvermos.
- É muito desagradável, de facto – confirmou o tio Refulgêncio.
- O Tao não é bom nem mau, está para além do bem e do mal, - disse o Zé.
- Sabem aquela do menino rico a quem a professora mandou fazer uma redacção sobre os pobres? – perguntou o Pereira, para desanuviar.
Os irmãos mexeram nas gravatas. Conte lá, Pereira, pediu a tia Adelina. O Pereira não parou, e como os copitos circulavam céleres e abundantes, as anedotas foram subindo de tom até Marciana dar ordem de jantar.
- Não está a correr mal, há? – disse o Miguel na cozinha, pronto a carregar reforços para a travessa do bacalhau. – Não estás chateada comigo, mãe? Só por aquele sentimento cristão do filho, dirigido à sua própria família, Marciana repôs o prato de bróculos e abraçou-o.
- Eu também já tive os meus pobres. Fizeste bem. O ideal era que ele não fizesse tanto barulho a comer.
O Miguel riu-se. À mesa, o Pereira contava a sua história aos irmãos que o ouviam em silêncio, atentos aos pratos respectivos e Marciana, ao entrar respirou fundo e tomou coragem – era preciso continuar a imaginar que o Pereira não era o Pereira e que se fosse o Pereira não estava ali, no meio da família, a dominá-los com um relato banal e lamentações. Era preciso ver e não ver o menino, e continuar.
Depois o Miguel levou o Pereira, que usava já um walkman e se despediu em gritos joviais. Nunca mais tirava os auscultadores, acabei por lho dar, disse o Miguel. Mas foi uma prenda minha, queixou-se Marciana.
- Finalmente! - desabou, Adelina, quando eles saíram.
O Zé pôde fazer a pergunta tradicional: se estavam todos prontos para as pastilhas contra a indigestão? Mas o Deodato achou que ainda era capaz de comer mais um sonho.
(Contos Outra Vez, Edições Cotovia)
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
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Bem bonito e bem escrito.
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