(Foto de José Magalhães) |
Fernando Assis Pacheco
Viver em Coimbra não era o mesmo que viver noutro ponto que fosse do universo mais geral, como Benito Prada se apercebeu sem que lho explicassem, mas demorando anos a destrinçar todos os matizes dessa diferença.
O seu estatuto de pequeno comerciante, agravada pela curta experiência na mestra de Ventosela, fazia dele um futrica, ou seja não-escolar, com o acesso gravemente condicionado ao círculo da ilustração.
Neste, se é permitido o excurso, cabiam os licenciados pelas várias faculdades, os estudantes, os sacerdotes e bem assim os militares a partir de oficial subalterno. No entanto podia ser cooptado um simples funcionário público ou, com liberalidade talvez excessiva, mesmo um empregado de balcão ou similar – o que se usava menos -, desde que tivesse feito um ou dois anos de liceu e as tertúlias dos cafés, rubicões severos, resolvessem admiti-lo. Dava-se também o caso de alguém bem posicionado nas câmaras do saber arrastar à soga um próximo parente sem grandes estudos nem dinheiro sonante; esse depois de analisado pelo júri da cidade letrada, se passasse com aproveitamento todos os graus de iniciação e ajustasse o nó da gravata ao modelo em voga, era recebido como igual pelos ilustrados.
Um bom apelido, melhor ainda se dobrado, tornava mais fácil esta operação, dada a sensibilidade do burgo à componente aristocrática. Aliás os aristocratas, na sua maior parte já sem bens de raiz e muitos deles roçando a pobreza envergonhada, vivendo a glória postiça de terem um avô citado, ainda que sob o estigma da bastardia, num cronicão dos frades crúzios, eram como universitários congénitos.
Ao lado, e bem entendido por cima, estavam os titulares das grandes fortunas, que o lente Maia Júnior exemplificava, mas não de todo, dado ser mestre laureado de Propedêutica Médica e não necessitar de mais atributos para declarar-se, como era, um excelso doutor. O benfeitor da Giraldiya não queria saber destas minudências, tendo até um dito para sacudir a prosápia dos ilustrados: "Posso bem com a Universidade, as baratas das estantes é que me enervam."
Livrava-se igualmente do entediante xadrez político da época tal e qual se livrara o pai, fechando o portão na cara aos chefes dos partidos com a desculpa das eleições fazerem perder as amizades. Politica e ilustração eram mundos concêntricos no mapa da I República.
Os estudantes pesavam desde há séculos na vida de Coimbra. Benito Prada gastou ainda mais tempo a interpretar esse aparente mistério, que suportava com náusea nos dias de festa. Achava má educação que eles trouxessem para a rua os trastes velhos e toda a sorte de latas vazias, com que organizavam cortejos de um pretenso humor insuportável.
"Insuportável para si", discordou Jorge Ourives um sábado em que os festejos desaguaram nas Escadas de São Tiago. "Estão na idade de fazer estas coisas, e se averiguar um a um, são quase todos rapazinhos da província, criados em meio pequeno, chegam cá e julgam-se uns cães galgos. Só os ensinam mal num ponto: a detestar os futricas."
"Há um particular que você não sabe", disse então o galego. "Futrica também se usa na minha terra entre os afiadores, significa coisa sem valor. Se eu adivinhasse que era este desterro tinha pensado duas vezes."
"Antes de vir? Mas veio, e quer deitar raízes em Coimbra. Vingue-se, homem, vingue-se com a ferramenta que tem: faça um filho e mande-o tirar o curso mais caro da Universidade, e se não for suficiente faça-o reitor, faça-o administrador do concelho, faça-o ministro, ou como o Sidónio diz, secretário de Estado".
Benito estava em brasa:
"Olhe-me aquele rexelo a molhar as pessoas com o regador!"
"Pois não devia, não senhor" disse o ourives imperturbável, "mas quem sabe se do rexelo não vai sair um martinho. Ou o futuro cardeal patriarca."
O galego pretendia à viva força bater no engraçado. Viajara os seus anos jovens com uma carroça, um mulo e uma bolsa de dinheiro atada à cinta por dentro das calças, disfarçada com o colete; refreara até à indecência os motivos de diversão, e mesmo Do Céu não tinha sido mais do que um acaso proporcionado pelo Grego. O ourives apartou-o:
"Deixe regar o rapaz, que é para a gente ver se cresce!"
Semanas depois, sem o confessar, achou uma graça supina a outra festa em que os estudantes queimaram as fitas de seda com as cores das faculdades num penico de esmalte, embebedando-se exaltadamente. Populares juntaram-se ao grupo e capitanearam a música.
Havia um coxo com uma viola braguesa e uma mulher de preto que cantava os fados de César Magliano, bonitos de chorar. Benito trauteou uma muiñeira do San Bartolomé mas ninguém sabia o acompanhamento.
(in Trabalhos e Paixões de Benito Prada, de Fernando Assis Pacheco, 4ª edição, Edições Asa, Lisboa, 1996, pp.108 a 111)
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