terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - Porque é que Cuba se transformou num problema dfícil para a esquerda? (4)

(Conclusão)

4 - Estado experimental. Por caminhos distintos, tanto a crise terminal por que passa o neoliberalismo como a experiência recente dos estados mais progressistas da América Latina revelam que estamos a caminho de uma nova centralidade do Estado, uma centralidade mais aberta à diversidade social (reconhecimento da interculturalidade, plurietnicidade, e mesmo plurinacionalidade, como no caso do Equador e da Bolívia), económica (reconhecimento de diferentes tipos de propriedade, seja estatal, comunitária ou comunal, cooperativa ou individual) e política (reconhecimento de diferentes tipos de democracia, seja representativa ou liberal, participativa, deliberativa, referendária, comunitária). De uma centralidade assente na homogeneidade social a uma centralidade assente na heterogeneidade social. Trata-se de una centralidade regulada pelo princípio da complexidade. A nova centralidade opera de formas distintas em áreas onde a eficácia das soluções está demonstrada (em Cuba, a educação e a saúde, por exemplo, apesar da degradação actual da qualidade e equidade do sistema), em áreas onde, pelo contrário, a ineficácia está demonstrada (em Cuba, o crescimento das desigualdades, os transportes ou a agricultura, por exemplo) e em áreas novas, que são as mais numerosas em processos de transição (em Cuba, por exemplo, criar una nova institucionalidade política e reconstruir a hegemonia socialista com base numa democracia de alta intensidade, que promova simultaneamente a redução da desigualdade social e a expansão da diversidade social, cultural e política). Para as duas últimas áreas (áreas de ineficácia demonstrada e áreas novas) não há receitas infalíveis ou soluções definitivas.
Nestas áreas, o princípio da centralidade complexa sugere que se siga o princípio da experimentação democraticamente controlada. O princípio da experimentação deve percorrer toda a sociedade e para isso é necessário que o próprio Estado se transforme num Estado experimental. Numa fase de grandes mutações no papel do Estado na regulação social, é inevitável que a materialidade institucional do Estado, rígida como é, seja sujeita a grandes vibrações que a tornam campo fértil de efeitos perversos. Acresce que essa materialidade institucional está inscrita num tempo-espaço nacional estatal que está a sofrer o impacto cruzado de espaços-tempo locais e globais.
Como o que caracteriza as épocas de transição é coexistirem nela soluções do velho paradigma com soluções do novo paradigma, e de estas últimas serem por vezes tão contraditórias entre si quanto o são com as soluções do velho paradigma, penso que se deve fazer da experimentação um princípio de criação institucional, sempre e quando as soluções adoptadas no passado se tenham revelado ineficazes. Sendo imprudente tomar nesta fase opções institucionais irreversíveis, deve transformar-se o Estado num campo de experimentação institucional, permitindo que diferentes soluções institucionais coexistam e compitam durante algum tempo, com carácter de experiências-piloto, sujeitas à monitorização permanente de colectivos de cidadãos, com vista a proceder à avaliação comparada dos desempenhos. A prestação de bens públicos, sobretudo na área social,7 pode assim ter lugar sob várias formas, e a opção entre elas, a ter lugar, só deve ocorrer depois de as alternativas serem escrutinadas na sua eficácia e qualidade democrática por parte dos cidadãos.
Esta nova forma de um possível Estado democrático transicional deve assentar em três princípios de experimentação política. O primeiro é que a experimentação social, económica e política exige a presença complementar de várias formas de exercício democrático (representativo, participativo, comunitário, etc.). Nenhuma delas, por si só, poderá garantir que a nova institucionalidade seja eficazmente avaliada. Trata-se de um princípio difícil de respeitar, sobretudo em virtude de a presença complementar de vários tipos de prática democrática ser, ela própria, nova e experimental. Oportuno recordar aqui a afirmação de Hegel: “quem tem medo do erro, tem medo da verdade”.
O segundo princípio é que o Estado só é genuinamente experimental na medida em que às diferentes soluções institucionais são dadas iguais condições para se desenvolverem segundo a sua lógica própria. Ou seja, o Estado experimental é democrático na medida em que confere igualdade de oportunidades às diferentes propostas de institucionalidade democrática. Só assim a luta democrática se converte verdadeiramente em luta por alternativas democráticas. Só assim é possível lutar democraticamente contra o dogmatismo de uma solução que se apresenta como a única eficaz ou democrática. Esta experimentação institucional que ocorre no interior do campo democrático não pode deixar de causar alguma instabilidade e incoerência na acção estatal, e pela fragmentação estatal que dela eventualmente resulte podem sub-repticiamente gerar-se novas exclusões.
Nestas circunstâncias, o Estado experimental deve não só garantir a igualdade de oportunidades aos diferentes projectos de institucionalidade democrática, mas deve também inclusão, que tornem possível a cidadania activa necessária a monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho dos projectos alternativos.
De acordo com a nova centralidade complexa, o Estado combina a regulação directa dos processos sociais com a meta-regulação, ou seja, a regulação de formas estatais de regulação social, cuja autonomia deve ser respeitada, desde que respeitem os princípios de inclusão e participação consagrados na constituição.
5 - Outra produção é possível. Esta é uma das áreas mais importantes de experimentação social e Cuba pode assumir neste domínio uma liderança estratégica na busca de soluções alternativas, quer aos modelos de desenvolvimento capitalista, quer aos modelos de desenvolvimento socialista do século XX. No início do século XXI, a tarefa de pensar alternativas económicas e sociais e por elas lutar é particularmente urgente por duas razões relacionadas entre si. Em primeiro lugar, vivemos numa época em que a ideia de que não há alternativas ao capitalismo obteve um nível de aceitação que provavelmente não tem precedentes na história do capitalismo mundial. Em segundo lugar, a alternativa sistémica ao capitalismo, representada pelas economias socialistas centralizadas, revelou-se inviável. O autoritarismo político e a inviabilidade económica dos sistemas económicos centralizados foram dramaticamente expostos pelo colapso destes sistemas nos finais dos anos 1980 e princípios dos 1990.
Paradoxalmente, nos últimos trinta anos, o capitalismo revelou, como nunca antes, a sua pulsão auto-destrutiva, do crescimento absurdo da concentração da riqueza e da exclusão social, à crise ambiental, da crise financeira à crise energética, da guerra infinita pelo controlo do acesso aos recursos naturais à crise alimentar. Por outro lado, o colapso dos sistemas de socialismo de Estado abriram o espaço político para a emergência de múltiplas formas de economia popular, da economia solidária às cooperativas populares, das empresas recuperadas aos assentamentos da reforma agrária, do comércio justo às formas de integração regional segundo princípios de reciprocidade e de solidariedade (como a ALBA). As organizações económicas populares são extremamente diversas e se algumas implicam rupturas radicais (ainda que locais) com o capitalismo, outras encontram formas e coexistência com o capitalismo. A fragilidade geral de todas estas alternativas reside no facto de ocorrerem em sociedades capitalistas onde as relações de produção e de reprodução capitalistas determinam a lógica geral do desenvolvimento social, económico e político. Por esta razão, o potencial emancipatório e socialista das organizações económicas populares acaba sendo bloqueado. A situação privilegiada de Cuba no domínio da experimentação económica está no facto de poder definir, a partir deprincípios, lógicas e objectivos não-capitalistas, as regras de jogo em que podem funcionar as organizações económicas capitalistas.
Para realizar todo o fermento de transformação progressista contido no momento político que vive, Cuba vai necessitar da solidariedade de todos os homens e mulheres, de todas as organizações e movimentos de esquerda (no sentido que lhe atribuí neste texto) do mundo e muito particularmente do mundo latino-americano. É este o momento de o mundo de esquerda retribuir a Cuba o muito que deve a Cuba para ser o que é.


Coimbra, 20 de Janeiro de 2009

2 comentários:

  1. A experimentação e comparação de diversas formas de participar, criar, distribuir, exige que o Estado se liberte da submissão aos grandes interesses capitalistas e promova a igualdade de oportunidades. Tanto nas actividades que lhe são próprias com nas da esfera privada, cooperativa e outras.Dessa forma Cuba, recomeçando , está numa situação mais crítica mas menos complexa.

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  2. quando olho para Cuba o meu pensamento vai para o quanto aquele país sofreu, o quanto aquele povo sofreu e sofre á conta do embargo... O ódio que as pessoas têm por um Estado socialista ou comunista que levam a que lhes façam a vida negra para não vingarem. Não vá o diabo tece-las e ... apareçam seguidores.
    Mas o que é certo é que Cuba foi em frente e é exemplo do que de mais importante existe para um povo: o ensino e a saúde. Afinal aquilo que por cá estamos tão mal servidos a somar à obesidade, droga, depressão, stress, solidão, pobreza extrema....

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