sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A Sereiazinha (6) - por Hans Christian Andersen

(Conclusão)

No dia seguinte, o navio entrou no porto da bela cidade do rei vizinho. Todos os sinos tocaram e das torres altas soaram trombetas, enquanto os soldados formavam com bandeiras flutuando ao vento e baionetas cintilantes. Cada dia havia uma festa. Bailes e reuniões de socie¬dade seguiam-se uns aos outros, mas a princesa ainda não chegara; estava a ser educada longe dali, num templo santo, disseram. Aprendia aí todas as virtudes reais. Por fim chegou.


A sereiazinha sentiu-se curiosa de ver a sua beleza e teve de reconhecê-lo: era a figura mais bonita que vira. A pele era fina e macia e, por detrás das longas pestanas escuras, sorria um par de olhos azuis-escuros, leais.


- És tu! exclamou o príncipe. - Tu que me salvaste, quando jazia como um cadáver na costa! - e apertou a noiva nos braços, que se fez vermelha. - Oh! Sou demasiado feliz! - disse ele para a sereiazinha. - O melhor, aquilo que nunca ousei esperar, tornou-se realidade para mim. Vais alegrar-te com a minha felicidade, pois gostas mais de mim do que todas as outras! - E a sereiazinha beijou-lhe a mão e pareceu-lhe sentir já o coração quebrar-se-lhe. A manhã do seu noivado trar-lhe-ia, pois, a morte e transformá-la-ia em espuma do mar.


Todos os sinos repicavam, os arautos percorriam as ruas a cavalo, a anunciar o noivado. Em todos os altares ardiam óleos aromáticos e preciosas lâmpadas de prata. Os sacerdotes balança¬ram os turíbulos, e noivo e noiva deram um ao outro as mãos e receberam a bênção do bispo. A sereiazinha estava vestida de seda e ouro, e segurava a cauda da noiva, mas os seus ouvidos não ouviam a música festiva, os olhos não viam a cerimónia santa, pensava na sua noite de morte, em tudo que havia perdido neste mundo.


Ainda nessa noite foram noiva e noivo para bordo do navio, os canhões soaram, todas as bandeiras flutuavam ao vento e no meio do navio estava erguida uma preciosa tenda de ouro e púrpura e com as mais bonitas almofadas. Aí ia o casal de noivos dormir na noite calma e fresca.


As velas enfunaram ao vento e o navio deslizou ligeiro e sem grande oscilação sobre o mar claro.


Quando escureceu, acenderam-se lâmpadas de cores variegadas e os homens do mar dan¬çaram danças alegres na coberta. A sereiazinha teve de lembrar-se da primeira vez que veio ao cimo do mar e viu a mesma pompa e alegria e lançou-se a rodopiar na dança, pairou, como paira a andorinha quando é perseguida, e todos manifestaram com júbilo a sua admiração, nunca dan¬çara tão maravilhosamente! Era como se facas afiadas lhe golpeassem os pés finos, mas ela não o sentia, feriam-na no coração mais dolorosamente. Sabia que era a última noite que veria aquele por quem havia deixado a família e o lar, por quem havia perdido a bonita voz e sofrido diaria¬mente tormentos infindos, sem vacilar. Era a última noite, respirava o mesmo ar que ele, via o mar fundo e o céu azul com estrelas. Uma noite eterna sem pensamentos e sonhos esperava por ela que não tinha nenhuma alma, nem podia alcançá-la. E tudo foi alegria e satisfação no navio bem para além da meia-noite, enquanto ela dançava com o pensamento da morte no coração. O príncipe beijou a linda noiva e ela acariciou-lhe o cabelo negro, e de braço dado foram repousar na tenda magnífica.


Fez-se silêncio e houve calma no navio, só o timoneiro ficou ao leme. A sereiazinha pôs os braços alvos na amurada e olhou para leste à procura de ver a aurora, o primeiro raio de sol, sabia ela, iria matá-la. Viu então as irmãs subirem ao de cima do mar. Estavam pálidas como ela, o seu cabelo longo e bonito não flutuava mais ao vento, fora cortado.


- Oferecemo-lo à bruxa para que nos ajudasse a conseguir que não morresses esta noite. Deu-nos uma faca, está aqui. Vês como é afiada! Antes de o sol se levantar, tens de a espetar no coração do príncipe e quando o seu sangue quente se derramar sobre os teus pés, transformar-se-ão estes numa cauda de peixe e tu voltarás a ser uma sereia, poderás descer na água até nós e viver os teus trezentos anos antes de vires a ser espuma morta e salgada. Despacha-te! Estás a ver a faixa vermelha no céu? Em poucos minutos vai nascer o sol e terás então de morrer! — E lançaram um suspiro estranho e profundo mergulhando nas ondas.


A sereiazinha afastou o tapete de púrpura da tenda e viu a bela noiva a dormir com a cabeça no peito do príncipe, beijou-lhe a linda testa, olhou para o céu, onde a aurora luzia mais e mais, olhou para a faca afiada e voltou a fitar os olhos no príncipe, que em sonhos pronun¬ciava o nome da noiva. Ela só estava nos seus pensamentos e a faca tremeu na mão da sereia... mas lançou-a para longe nas ondas que brilharam vermelhas onde caiu. Era como borbulhassem gotas de sangue ao de cima da água. Ainda uma vez olhou para o príncipe, com o olhar meio enublado, depois lançou-se do navio ao mar, onde o seu corpo se desfez em espuma.


Nasceu então o sol. Os seus raios tombaram suaves e quentes sobre a espuma do mar fria de morte e a sereiazinha não sentiu a morte, viu o sol luminoso e por cima dela pairarem centenas de belas criaturas transparentes. Podia ver através delas as velas brancas do navio e as nuvens vermelhas do céu. As suas vozes eram melodiosas, mas tão espirituais que nenhum ouvi¬do humano podia ouvi-las, tal como nenhuns olhos terrestres podiam vê-las. Sem asas pairavam pela sua própria leveza no ar. A sereiazinha viu que tinha um corpo como elas, que se elevava mais e mais da espuma.


- Para quem venho eu? — disse ela e a sua voz soou como a dos outros seres, tão espiritual que nenhuma música terrestre pode transmiti-la.


- Para as Filhas do Ar! — responderam as outras. - As sereias não têm uma alma imortal, não podem nunca alcançá-la, só se ganhassem o amor dum ser humano. Dum poder estranho depende a sua existência eterna. As Filhas do Ar também não têm alma eterna, mas podem elas próprias com boas acções obter uma. Voamos para as terras quentes, onde o ar pestilento e abafado mata os homens. Aí produzimos frescura. Espalhamos perfume de flores no ar e damos frescura e alívio. Se nos tivermos esforçado trezentos anos por fazer o bem, podemos então alcan¬çar uma alma imortal e participar na felicidade eterna dos seres humanos. Tu, pobre sereiazinha, esforçaste-te com todo o coração pelo mesmo que nós, sofreste e suportaste dores, elevaste-te para o mundo dos espíritos do ar e agora podes tu própria com boas acções conseguir uma alma imortal dentro de trezentos anos.


E a sereiazinha ergueu os braços claros para o sol de Deus e, pela primeira vez, sentiu correrem-lhe lágrimas... No navio havia outra vez alarido e vida, viu o príncipe com a sua linda noiva a procurá-la. Olhavam tristes para a espuma borbulhante, como se soubessem que se lan¬çara nas ondas. Invisível, beijou a testa da noiva, sorriu para ele e subiu com as outras Filhas do Ar na nuvem cor-de-rosa que flutuava no céu.


- Em trezentos anos ascenderemos assim para o reino de Deus!


- Também podemos mais cedo alcançá-lo! — murmurou uma — Entramos invisíveis nas casas dos homens, onde há crianças e por cada dia que encontramos uma criança boa, que faz a alegria dos pais a merece o seu amor, Deus encurta o nosso tempo de prova. A criança não sabe, quando voamos pela casa e, se tivermos de sorrir de alegria por ela, é-nos tirado um ano dos trezentos, mas se virmos uma criança malcriada e má, então temos de chorar lágrimas de tristeza e cada lágrima aumenta de um dia o nosso tempo de prova!

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