Terminada a viagem do Estrolabio, boa parte dos seus antigos autores lança-se em nova aventura, por outros mares. Poderão encontrar-nos em http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/. Prometemos que todos serão bem-vindos a bordo, sejam marujos inexperientes ou velhos lobos do mar.
Benedicto Garcia, um dos grandes nomes da música galega, além de amigo foi um dos companheiros musicais do Zeca.
Como ele próprio contou, depois de ouvir músicas do Zeca, em Abril de 1972 e obtida que fora a morada junto da editora, o Benedicto e amigos viajaram para Portugal e foi bater à porta da casa do Zeca, em Setúbal. Desconfiado pela vigilância a que a PIDE o submetia, o Zeca começou por bombardear de perguntas os quatro galegos surgidos do nada. Iniciou-se ali uma longa amizade e companheirismo musical e de solidariedade política internacional.
José Afonso tocou repetidamente por terras galegas e foi acompanhado por músicos galegos – não apenas na Galiza – em muitas actuações e gravações. O mesmo José Afonso que declarou que a Galiza era para ele também uma espécie de pátria espiritual.
Fruto da convivência de ambos, e das confluências galego-portuguesas, foi a coincidência de terem, cada um do seu lado, composto uma versão inspirada pela mesma canção raiana que tinham conhecido em férias conjuntas: "Nossa Señora da Guia" (no álbum de Benedicto, Pola Unión) e "Chula da Póvoa" (no álbum de José Afonso, Com as minhas tamanquinhas).
Aqui fica a história tal como contada pelo Benedicto:
«No verão do 73 fomos á Illa da Fuzeta para estrear umas tendas de campismo que compráramos em "Trigano" numa viagem a França e Bélgica, á que viera o Zeca e o meu camarada Bibiano.
A estrea foi por tudo o alto e a ela asistiron o Zeca e a Zèlia, os miúdos, Pedro e Joana e nós, Maite e eu. A do Zeca, familiar, com vários quartos, já se adivinhava de lonje que não ía ser morada do seu dono que na altura andava lixado coa súa perenne insomnia. Nós, os galegos, ficamos naquela tenda máis pequena que para dois era de máis. Aliás, e único que había a fazer naquela illa despovoada (a penas ían pessoas e non había nem "vaporetto" nem nada parecido e assim as viajems ao "continente" eram a "brazo", a vogar co remo) era poñer o coiro, tudo o coiro, ao sol, para escándalo, é verdade, de algúms. Si había dúas casotas de tijolos e um "barsinho" com petiscos ao que se integrava o Zeca e família cada día para tomar aquela marabilla de sardinhas grelhadas. Não tenho a certeza de se são as melhores as de além ou as de Rianxo, na ría de Arousa, ou as de Safi, no atlántico marroquino, onde as tomamos no ano 2000 numa viajem que fizemos coa Zèlia e onde há muitos portugueses a travalhar, entre eles um tío da Zèlia que era a quem íamos em particular a visitar naquele porto tão cheio de color e alegría. Isto deve ser aplicável a casi tudos os portos, hajo eu, de jeito que não estou a descuvrir nada novo, pero dado que pasávamos pelo sabor das sardinhas...
No día a seguir á "inauguração" do campamento (as tendas eram as sôzinhas que lá havía) chegou pelo lugar o Zé Manel, o filho máis velho do Zeca que andava, também, de férias. Vinha do Norte e trazía um pressente muito especial: além, diante dos dois (e imagino que havería algúms máis) tirou de viola e empezou a cantar uma canção "raiana", que segundo as súas fontes, era cantada nas celebrações nas dúas beiras do Minho, no norte galego e no sul portugués. A canção, simples de composição, tinha tres quadras:
Nosa Senhora da Guía
Guía aos homens do mare
Venha ver a barca vela
Que se vai deitar no mare
Nosa Senhora vai dentro
Os anjinhos a remare
A partir desse momento a canção, tal e como estava, foi incluída por nós nos espectáculos que sempre realizávamos acompanhándonos mutuamente para, com máis ou menos fortuna, sumar dúas violas e, sobre de tudo, dúas vozes, pois os dois éramos moito dados a fazer dúos. Sempre era eu quem aprendía alguma nova forma de impostar, de flexionar a voz, de construir as segundas vozes á "alentejana" ou como fosse. É a vantagem de compartir com um génio: um sempre receve muito, muito, muito...
A partir do 25 de avril, não voltamos a ter esta espécie de parelha (o seu lugar sería ocupado pelo Bibiano ata o 78). Aínda que sempre mantivemos, até o fim dos seus días, a mesma cordialidade, o "guião" que tinhamos que interpretar foi outro bem diferente. Em tanto que, em Portugal, as liberdades inundavan as rúas e o Zeca tinha que dedicarse a canalizar tuda aquela energía desbordante que o mantinha em constante "bebedeira" intelectual, artística, política e humana, em Espanha aínda tardaríam em chegar: em fevereiro do 77 aínda eram prohibidos espectáculos.
No mes de maio desse ano gravei o meu primeiro L.P.: "Pola Unión" e nele havía uma canção intitulada "Nosa Señora da Guía":
Nosa Senhora da Guía
Guía ós homes do mare
Veña ver a barca vela
Que se vai deitar no mare
Nosa Señora vai dentro
E os anxiños a remare
En Ourense as gueivotas
Non saben o que é voare
Os mariñeiros traballan
No mare da liberdade
Outros pesqueiros reventan
Prós señores engordare
Hai un caravel vermello
No fusil do militare
Quen non viu cantar un vello
Non sabe o que é cantare
Coa emoção própria do neófito (e eu éra-o pois a penas gravara um e.p. de 4 canções no 68 em Barcelona) dinlhe ao Zeca o disco e ele fez o próprio e trocou-o por um dele. Neste dico estava "Chula da Póvoa" a súa versão, máis portuguesa, com uma irmá no meu disco, máis galega.
Á "Nosa Señora da Guía" aconteceu-lhe o melhor que lhe pode acontecer a uma canção: sem saver a súa origem, sem saver sequera quem a gravou, algúms, moços e não tão moços cántana pelas rúas.»
Fica também a letra, ajustada ao momento, que o Zeca associou à música:
Chula da Póvoa (José Afonso, 1976)
Em Janeiro bebo o vinho
Em Fevereiro como o pão
Nem que chovam picaretas
Hás-de cair, Rei-Milhão
Adeus, cidade do Porto
Adeus muros de Custóias
Cantando à chuva e ao vento
Andei a enganar as horas
Tenho mais de mil amigos
Aqui não me sinto só
Cantarei ao desafio
Ninguém tenha de mim dó
Ó meu Portugal formoso
Berço de latifundiários
Onde um primeiro ministro
Já manda a merda os operários
Já hoje muito maroto
Se diz revolucionário
E faz da bolsa do povo
Cofre-forte do bancário
Camaradas lá do Norte
Venham ao Sul passear
Cá nas nossas cooperativas
Há sempre mais um lugar
Interessante ainda ouvir a versão que mistura instrumentos dos gaiteiros Treixadura e vozes dos gaiteiros de Lisboa:
No último vídeo da homenagem ao Zeca, em Pontevedra em Abril de 2007, temos o Sérgio Godinho, com No lago do Breu, seguindo-se o fecho com todos os intervenientes a cantar, claro, a Grândola Vila Morena. Sempre Zeca, obrigado.
Políbio Gomes dos Santos (1911-1939) Voz Que Escuta
João Machado
No corrente ano de 1911 faz cem anos que nasceu Políbio Gomes dos Santos. No mesmo ano nasceram Manuel da Fonseca e Alves Redol, conforme já foi lembrado aqui no VerbArte. Políbio Gomes dos Santos faleceu em 1939, de tuberculose. No mesmo ano concorrera aos Jogos Florais Universitários de Coimbra, vencendo o prémio António Nobre, com um volume de poemas que mais tarde foi incluído no Novo Cancioneiro, e publicado em 1944. Esse volume tomou o título de Voz Que Escuta, de um dos poemas nele incluídos. Políbio Gomes dos Santos publicara anteriormente, em 1938, As Três Pessoas, outro livro de poemas, que Alexandre Pinheiro Torres, na apresentação que faz do poeta e da sua obra, incluída na edição da Caminho do Novo Cancioneiro saída em 1989, considera indispensável ler para se poder apreciar inteiramente o segundo volume da obra.
Apresento-vos a seguir Poema da Voz Que Escuta, para recordarmos Políbio Gomes dos Santos e a sua obra, neste ano em que se completa o centenário do seu nascimento:
Em tempos idos pensava que o neoliberalismo não avançava tão rapidamente na sociedade portuguesa como o está a fazer actualmente no ensino, mesmo quando o sistema dá sinais evidentes de estar quase defunto. Feita a reforma do ensino superior, dita reforma de Bolonha, pensava eu, ingenuamente, que algum pudor haveria em avançar com mais reformas antes de estabilizar esta e portanto que se passaria primeiro por uma análise em profundidade desta reforma, na óptica de quem a lançou no terreno, neste caso na óptica de Mariano Gago e de quem o acompanha, de quem o defende, de quem o serve ou d equem é obrigado a servi-lo. Mas não, mais uma vez me enganei. O ritmo de reformas avança, e agora é a avaliação dos docentes que avança, é o sentido da classificação, da quantificação da qualidade que se pretende, pretende-se assim o impossível mas como não é crível que intelectuais e técnicos assumidos andem a trabalhar para querer o que toda a gente sabe que é impossível, então o objectivo é outro, para mim é certo de que o que se pretende é garantir, agora ou depois, um certo ritmo da desclassificação, um certo ritmo de redução de custos. De resto, agora nem sequer se fala em promoções. Então avalia-se oara quê? Alguém é capaz de me dizer? Penso ter razão e, se assim é, ninguém mente pois nos tempos de crise que se vivem em que todos os cofres estão vazios, promover, significa agora despromover, e é disso que se anda à procura. Evita-se a mentira de o dizer.
O conteúdo de uma obra é uma nova visão da realidade, às vezes um conflito, uma ponte ou uma travessia difícil entre a ideia e o Homem. Uma travessia sem demonstrações de verdade nem garantias de segurança. A única garantia é que algo muda dentro de nós e do mundo, por via da total liberdade do artista. A Arte é uma das formas mais livres de investigação e expressão de ideias e uma das maiores fontes de enriquecimento da nossa espontaneidade.
O artista é um ser vivo em mutação constante, com profunda experiência da vida, da alegria e do sofrimento do viver. O artista, ainda que nem sempre culto no sentido global do termo, está mais ou menos profundamente inserido no mistério da Natureza e das relações humanas, tal como o cientista e o filósofo, investigando, descobrindo e propagando ideias. Ele é dotado da energia, da acção, da sensibilidade, da curiosidade, da rebeldia e da capacidade de sofrimento necessárias à ânsia de conhecimentos novos, sem a qual não é possível uma personalidade artística profunda. Uma personalidade capaz de dirigir o olhar para outros mundos, outras formas de ser e de estar, outras maneiras não doutrinadas de olhar a existência.
A vivência da Arte é absolutamente singular e não tem paralelo com outro tipo de vivência. Há quem diga que aquele que não vive a Arte não vive a vida. Não querendo ser tão radical, prefiro dizer que quem não vive a Arte não sabe o que perde. Quem vive uma obra de Arte, poderosa expressão da essência humana, está constantemente a aprender uma experiência vivencial que não faz parte dos nossos padrões habituais de reflexão. E pode, se o estímulo, a sensibilidade e o sentido artístico tiverem a força necessária, alcandorar-se a instâncias onde reside uma fruição única do prazer estético.
«Todo o grupo social precisa de transmitir a sua experiência acumulada no tempo à geração seguinte, como condição da sua continuidade histórica. O facto de os membros individuais do grupo estarem sempre a renovar-se, seja pela morte, seja pelo nascimento, dinamiza a necessidade de que essa experiência acumulada, que se denomina saber e existe fora do tempo individual, fique organizada numa memória que permaneça no tempo histórico. A questão está em saber se é mais útil para a reprodução do grupo que os novos reproduzam o saber; ou que entendam a necessidade dele por meio de praticar a sua utilidade. O primeiro seria ensinar o que já se tem, subordinada à letra do que já se possui como explicação da natureza e das relações entre os homens; o segundo seria aprender o processo que dinamiza as operações pelas quais a mente humana resolve uma questão cada vez uma problemática se lhe coloca. »
Delícias são tudo o que nos faz felizes. E é para isso que queremos contribuir com esta rubrica do Estrolabio: para espremer a dura realidade e dela extrair as gotas do néctar que, apesar de tudo, contém.
Quando lemos o texto que alguém escreveu, o poema em que os tocados por varinha mágica transformam a dor e a alegria, as cartas que amigos ou amantes trocaram, quando olhamos as imagens que a paleta guiada pela mão dum artista produziu, quando entramos em êxtase através de sublimes sons que nos invadem o éter, o que somos senão felizes?
Ao nosso Jardim vai faltar apenas o que saboreamos e o que tocamos para as delícias morarem todas aqui. Mas mais não conseguimos. Somos, apenas, pobres virtuais. Só esperamos conseguir empolgar-vos de modo a experimentarem no mundo real todos os prazeres que aqui faltarem.
Mas o Jardim tem matizes. Nem sempre nele vai raiar o sol porque nunca isso acontece em lugar algum. Nos dias sombrios, as ameaças e os medos escondem-se em recantos insuspeitos. O que ele vai estar sempre é povoado por vibrações de vida. Disso não tenham dúvidas.
Venham connosco. Tragam as vossas palavras seja qual for a expressão que para elas adoptarem.
Haverá quem nos relate as vivências em Eu li, Eu vi, Eu ouvi, Eu fui; outros afirmarão que Quem Conta Um Conto…; quem vá informar que Hoje Falamos de…; os que nos trazem Boas e Más Memórias, auxiliares para melhor percebermos o mundo e os seres.
Destas e doutras coisas se falará neste sítio: do que vai acontecendo por aqui e por ali, do que a nossa imaginação nos permitir e das delícias que formos capazes de ir encontrando na arrecadação dos tesouros ao fundo do nosso Jardim.
Vamos começar com uma semana sobre a Criação Artística que poderá estender-se caso o interesse pelo tema assim o justifique.
É já amanhã, e será todos os dias às 14 horas que se abrirá o portão. Entrem e vagueiem a vosso belo prazer.
Como preâmbulo, um pequeno excerto de um texto de Carlos de Oliveira:
“Tornam a discutir-se entre nós certas ideias de filosofia da arte que pareciam ultrapassadas ou esquecidas. Debate-se outra vez a velha tese que admitia a gradual cegueira da arte à medida que o horizonte da ciência se fosse iluminando. Examina-se também de novo a “busca do intemporal”. E, coisa curiosa, é possível estabelecer uma ligação entre esses dois surtos, apesar da disparidade ideológica que os suscita. Em boa verdade, se o progresso científico ameaça liquidar a criação artística, porque não tentar salvaguardá-la “au-dessus de la mêlée” no intemporal? A antinomia entre ciência e arte, guerra de alecrim e manjerona mais ou menos fomentada pelo positivismo, pode servir deste modo uma escala de valores completamente opostos. E assim se volta a filosofia contra os filósofos.”
(in Almanaque Literário, O Aprendiz de Feiticeiro, Assírio & Alvim)
Adão Cruz
Alexandra Pinheiro
Andreia Dias
António Gomes Marques
António Marques
António Mão de Ferro
António Sales
Augusta Clara de Matos
Carla Romualdo
Carlos Antunes
Carlos Durão
Carlos Godinho
Carlos Leça da Veiga
Carlos Loures
Carlos Luna
Carlos Mesquita
Clara Castilho
Ethel Feldman
Eva Cruz
Fernando Correia da Silva
Fernando Moreira de Sá
Fernando Pereira Marques
Hélder Costa
João Machado
José Brandão
José Magalhães
Josep Anton Vidal
Júlio Marques Mota
Luís Moreira
Luís Rocha
Manuel Simões
Manuela Degerine
Marcos Cruz
Maria Inês Aguiar
Paulo Melo Lopes
Paulo Rato
Pedro Godinho
Raúl Iturra
Rui de Oliveira
Sílvio Castro