terça-feira, 21 de dezembro de 2010



Para que serve a Arte (2) (Uma visão pessoal)

Adão Cruz

O conteúdo de uma obra é uma nova visão da realidade, às vezes um conflito, uma ponte ou uma travessia difícil entre a ideia e o Homem. Uma travessia sem demonstrações de verdade nem garantias de segurança. A única garantia é que algo muda dentro de nós e do mundo, por via da total liberdade do artista. A Arte é uma das formas mais livres de investigação e expressão de ideias e uma das maiores fontes de enriquecimento da nossa espontaneidade.

O artista é um ser vivo em mutação constante, com profunda experiência da vida, da alegria e do sofrimento do viver. O artista, ainda que nem sempre culto no sentido global do termo, está mais ou menos profundamente inserido no mistério da Natureza e das relações humanas, tal como o cientista e o filósofo, investigando, descobrindo e propagando ideias. Ele é dotado da energia, da acção, da sensibilidade, da curiosidade, da rebeldia e da capacidade de sofrimento necessárias à ânsia de conhecimentos novos, sem a qual não é possível uma personalidade artística profunda. Uma personalidade capaz de dirigir o olhar para outros mundos, outras formas de ser e de estar, outras maneiras não doutrinadas de olhar a existência.

A vivência da Arte é absolutamente singular e não tem paralelo com outro tipo de vivência. Há quem diga que aquele que não vive a Arte não vive a vida. Não querendo ser tão radical, prefiro dizer que quem não vive a Arte não sabe o que perde. Quem vive uma obra de Arte, poderosa expressão da essência humana, está constantemente a aprender uma experiência vivencial que não faz parte dos nossos padrões habituais de reflexão. E pode, se o estímulo, a sensibilidade e o sentido artístico tiverem a força necessária, alcandorar-se a instâncias onde reside uma fruição única do prazer estético.


Não quero terminar sem dizer que há necessidade de distinguir entre Arte, obra de Arte e mercantilização ou mercadotecnia da Arte. A Arte, a mais nobre vertente da vida humana, sentimento artístico como qualquer outro sentimento, como o sentimento da alegria, da tristeza ou da liberdade, é parte integrante da nossa esfera neural e mental, e desta forma pode ser considerada eterna, dentro da relativa eternidade humana. Sendo a obra de Arte a expressão visível e palpável do sentimento artístico, e, como relação de vida que é, exige, para ser vivida integralmente, uma contemporaneidade de sentimentos. Sou dos que pensam que a obra de Arte, como vivência integral, é efémera, ainda que esta efemeridade possa durar séculos. Há momentos a que chamamos eternos na Arte da antiguidade ou correntes artísticas ditas imortais. Mas estes momentos, estas correntes, ainda que nunca perdendo a transversalidade universal da Arte, têm o valor que lhe damos em função das necessidades e dos interesses actuais. Não sou, contudo, radical ao ponto de referir o vazio dos recalcitrantes defensores do classicismo ou, em sentido oposto, o cheiro cadavérico dos museus.

O mercado da Arte engendra formas, não de purificar a Arte, mas de divinizar a obra-objecto, endeusar e entronizar os autores através de cadeias de relações, validação de marcas e autorias, legitimações culturais e históricas, leilões e jogos de galerias, tantas vezes snobs e subterrâneos, juízos de valor produzidos e caucionados por elites, de acordo com os interesses e mais-valias que possam render. Senhores ditos muito cultos, servindo-se de exaustivos materiais bibliográficos, criadores de textos labirínticos com grande projecção pública, encerram o fenómeno artístico nas densas malhas das suas análises, fabricam convicções e preconceitos, maquetizam a liberdade dos sentimentos, e quando nos damos conta já a Arte e a vida desandaram para outros caminhos. Mentalidades dirigistas, cheias de regras, liturgias e falsos mitos, que nos afastam da arte de viver a Arte. Vivemos num mundo dominado pela técnica, sufocados pelo egoísmo. Tudo ou quase tudo o que nos envolve é artificial e muitas vezes falso. Vivemos alienados e escravizados. Pena é que esta escravização tenha invadido e contaminado a expressão artística.

Nada do que atrás foi dito tem a ver com a Arte em si, e pode levar a que a obra perca a capacidade de se impor pela força da sua presença, e se imponha apenas pela assinatura ou pela auréola que à sua volta criaram os fabricantes de ideias e opiniões, vendo-se reduzida ao estatuto de simples objecto transacionável. Em minha opinião, esta é a face negativa da expressão artística, a que faz descer a obra do elevado patamar dos valores imateriais do homem, para o rasteiro patamar do ter e do poder, para a vertente menos edificante do ser humano, a posse. Este assunto é, todavia, muito complexo, abrangendo conceitos de dimensão mental e cultural, de dimensão económica, de dimensão simbólica, de dimensão política e de dimensão social, que não cabe aqui analisar em pormenor, e que levam a comportamentos e percursos que vão desde a dignidade à degradação.

Talvez tudo fosse diferente se a obra de Arte não tivesse autor nem valor material. O autor da obra é, com efeito, um dos maiores obstáculos à supressão do real-palpável. O autor-pessoa deveria desaparecer na conclusão da obra, a qual seria lançada ao vento como natureza essencial, com toda a sua liberdade e autonomia. Se tal fosse possível, e a obra pudesse ser património colectivo, então sim, poderia atingir o seu verdadeiro estatuto de ponte entre a dimensão antropocêntrica e a dimensão universal do homem, deixando de ser um mero ingrediente deste caldo generalista da nossa cultura.

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