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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

VerbArte - Mas o que tem o Menino Jesus a ver com isto?




Manuela Degerine

Somos uma sociedade que, embora em crise, não deixa de consumir; e que, através do consumo, aprisiona. Viver tornou-se, para tanta gente, um círculo vicioso: trabalhar para comprar para deitar no lixo para voltar a comprar... até à morte. Exaltante? Dito assim, não parece. E, no entanto... A sociedade do espectáculo esvazia as cabeças para depois – ou ao mesmo tempo – lá lançar a publicidade. Um responsável de televisão francesa, Patrick Le Lay, explicava isto em 2004: o objectivo é criar no espectador uma disponibilidade cerebral susceptível de ser vendida à Coca-cola.

Devo dizer que represento um caso bicudo para os publicitários. Não me recordo da última vez que fiz uma compra impulsiva. No lixo só ponho lixo; respeito os três R: reduzir, reciclar e reutilizar. Escolho os alimentos em função do gosto, da qualidade, da quantidade, da proveniência (portuguesa, francesa, europeia...) e do preço; posso trazer a marca mas nunca pela marca, procuro certo tipo de farinha, tal qualidade de ovos, cacau com determinados aromas... E leio todas as etiquetas. Quanto à roupa, também sou capaz de optar por marcas, embora quase sempre me afaste delas, por me parecerem um uniforme fácil e vulgar; gosto de me sentir distinta na aparência. Comprar é para mim uma tarefa, como pôr roupa a lavar na máquina – não é uma forma de expressão. E, para concluir, o tempo parece-me demasiado curto e precioso e aprazível para o vender – isto é: trabalhar – mais do que o indispensável; por conseguinte, para preservar esta liberdade, aos precedentes acrescento outro ingrediente do bem comprar: penso mais duas vezes. (Não é hoje que as televisões poderão vender o espaço vazio do meu cérebro.)

Já adivinharam... Vem tudo isto a propósito do Natal. Na infância da minha mãe havia filhós, um presépio e o Menino Jesus; porém a minha geração já se confrontou com um Natal importado. Lembro-me de olhar para o pinheiro com desencanto: não o achava nada parecido com os dos livros. A neve, as renas, os abetos e o Pai Natal começavam a descer à península ibérica, acabaram por se tornar tão familiares que as crianças já não notam o sotaque – agora é asiático – e, associados ao particularismo lusitano do décimo terceiro mês, projectaram o último trimestre do ano para os píncaros do absurdo: os lisboetas entram no stress de Natal desde o mês de Setembro.

Não é o meu caso. Não ofereço nem recebo prendas de Natal. (Gosto de oferecer, gosto de receber mas não em datas fixas; a surpresa e a motivação fazem parte da prenda.) Não me sinto obrigada a encorajar a economia chinesa – que é de onde vêm os contentores. Nem a aumentar o lixo de Natal – que é onde tudo se conclui.

Sim, dirão muitos leitores, mas a festa?... O Natal é a festa da família. Pensemos então a festa de uma maneira mais criativa – há tantas – do que o simples acto de comprar. Uma festa que passe por viver, sentir, fazer, descobrir – e não apenas por ter. Somos demasiado refinados para nos contentarmos com um monte de prendas embrulhadas. Somos exigentes, queremos melhor. E... livres do pesadelo das compras de Natal, sobra-nos tempo para uma festa verdadeira. Ou para uma aventura comum. É mais simples do que parece, todos podemos experimentar e não corremos grande risco; expostas as razões, feitas as propostas, encontramos, na maior parte dos casos, entre os familiares, uma adesão espontânea. (Simples bom senso.) Transformamos as horas que vivemos numa prenda: perene.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Semana do Ensino - Duas profissões

Manuela Degerine

A Educação Nacional francesa fez de mim, nos primeiros quinze anos, uma professora feliz. O objectivo era a aquisição de conhecimentos, a descoberta e desenvolvimento das potencialidades de cada aluno; eu participava nesta tarefa através do português e da cultura dos países lusófonos. Dei aulas em mais de dez escolas diferentes pois como, em cada uma, não havia um número suficiente de alunos para o horário completo, trabalhava no mínimo em duas cada ano; uma delas era o liceu de Colombes.

No decénio e meio passado no liceu de Colombes fui – repito – uma professora feliz. Gostava dos alunos, gostava dos colegas, gostava da escola, gostava de ir de bicicleta para o trabalho... Podia ter-me candidatado ao ensino superior mas nada me interessava mais do que trabalhar com aqueles jovens. Não tinha a sensação de vender o meu tempo; não havia fronteira entre o trabalho e a vida. Era professora vinte e quatro horas por dia. O que lia, sonhava, descobria, a rádio, a música, os filmes, os museus, as viagens, os encontros, as conversas – tudo ia parar, de uma ou de outra maneira, à sala de aula. Lembro-me de acordar, a meio da noite, para acrescentar um texto ou um pormenor a uma aula... Lembro-me de turmas que entravam neste jogo: eu apresentava um poema de D. Francisco Manuel de Melo avisando, se for difícil, não há problema – passamos a outra coisa. Eles provavam que não era difícil, reclamavam mais D. Francisco Manuel de Melo. Eu levava um pedaço d'O Fidalgo Aprendiz. Eles queriam mais...

É um exemplo, podia dar trinta. No mínimo. A inteligência, a adesão, a curiosidade, a cumplicidade dos alunos permitiram-me descobrir e inventar durante quinze anos. Nunca enviei uma queixa aos pais através da caderneta – não foi necessário. Orgulho-me de ter conseguido motivar dezenas de alunos desmotivados. Orgulho-me de, ainda hoje, os alunos de Colombes – e muitos de outra escolas – me continuarem a escrever. Ah, que bom era aprender português!

E que bom era ser professora...

Passados quinze anos, por razões de gestão do pessoal, mudei de zona; e entretanto também mudou a gestão de recursos (ou da falta deles) na Educação Nacional. Encontrei-me no liceu de Sartrouville... Descobri outra profissão. Turmas de trinta e cinco, trinta e sete adolescentes. Alunos hostis. A administração: salve-se quem puder. Passei a ser insultada todos os dias. Passei a receber ameaças dos alunos e – pior – dos pais dos alunos. Não todos, claro, uma minoria; suficientes para tornarem esta profissão perigosa. Pelo stress. Pela violência. Pela perda de tempo, isto é, de vida. (Quem vende tempo é sempre enganado.) O objectivo, seja qual for o parlapatéu dos programas, tornou-se apenas este: ocupar o máximo de jovens durante o máximo de tempo com o mínimo de meios. Pouco importam os verdadeiros resultados; todos passam nos exames, basta baixar as exigências. E todos os anos – ou quase – elas baixam... Em tais circunstâncias convém usar a demagogia e não pedir esforços. Tornei-me uma professora demasiado exigente por propor textos do Mário de Carvalho. Por conseguinte... arrumei a literatura na estante. Esta escola pretende ser lúdica – para quem? Não creio que os alunos se divirtam; e os professores ainda menos. Todos perdem tempo. Todos se sentem perdidos.

Não é o que digo?... Outra profissão.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Há quanto tempo a não via?

Manuela Degerine


As rádios e televisões francesas não falam de outra coisa: chegou a neve. Dezasseis graus negativos em Orleães, aldeias sem electricidade, a circulação interrompida, os camionistas encalhados, náufragos da neve, na metáfora radiofónica, alguns voos e Eurostar suprimidos, cidades com transportes paralisados, múltiplas estratégias de substituição – uma das quais é circular de bicicleta. Os pneus para a neve esgotados, as botas para a neve vendidas. As crianças radiantes por não haver escola. As crianças felizes por brincarem na neve. Os grandes debates: o sal nas estradas, a arquitectura ecológica, o pico do consumo de energia temido, atingido e, por fim, não ultrapassado graças ao civismo dos habitantes da Bretanha que apagaram as luzes inúteis, adiaram as lavagens de roupa e desceram dois graus no aquecimento das casas. Uf... A descoberta, nas aldeias sem electricidade, de outro modo de vida: a botija de água quente, a conversa junto da lareira, o deitar às nove da noite... Como no tempo dos nossos avós. As entrevistas nas Galeries Lafayette, permanecer elegante no frio, não às fibras termolactil, sim às camisolas de cachemira... O abrigo dos sem-abrigo.

Assisto a tudo com uma estranheza crescente, não só porque passei o ano em Lisboa, onde o calor me sinistrou durante três meses, mas também porque em Paris francamente... As temperaturas diurnas andam à volta dos zero graus o que, com meias e luvas de lã, duas camisolas e um blusão de penas, se vive muito agradavelmente. Tenho caminhado por ruas e parques sem me sentir refrigerada. Diversas vezes, durante percursos de bicicleta, caíam farrapos de neve; achei muito bonito. As casas, os transportes, todos os edifícios públicos e privados são aquecidos – excessivamente. Demasiado branca e pura para se tornar banal, não podemos contudo dizer que seja aqui novidade; no entanto quem vê o telejornal fica com a impressão de, na história climática da França, ter agora caído neve pela primeira vez. Parece que estamos no Rio de Janeiro.

Ou em Lisboa. Ontem, saturada de branco, rumo à RTPi... Portugal é verde no Inverno. E qual não é o meu espanto? O país estava todo virado para a Serra da Estrela. Mais neve, mais estradas interrompidas, mais autocarros imobilizados. Mais blablá refrigerado. Na verdade... Em Portugal ainda compreendo: pouco frequente na maior parte do território, constitui uma informação, entre o pavor – carros virados – e o estético e o lúdico. As imagens são de facto bonitas e, para a maioria dos portugueses, evocam viagens à montanha, a dos dois mil menos sete, a única, a da Estrela; no mínimo: a descoberta do sku durante uma viagem escolar. Lembro-me que, na primeira vez, teria uns cinco anos, provei a neve: na minha imaginação a Serra de Estrela era o cume dos gelados de coco. Achei um tanto insípido. Comecei a compreender que as estrelas cobertas com gelado são reais na imaginação. Já não é pouco. A realidade da neve? Essa conhecem-na os habitantes das serras, esta e outras, no Centro e no Norte do país pois, no mínimo, desde o tempo dos Montes Hermínios, mais ano, menos ano, se confrontam com o frio e as escorregadelas. Por estranho que pareça a alguns, muito antes de as reportagens os descobrirem a eles, já os habitantes das serras conheciam a neve e sabiam o que fazer quando ela cai; até sabiam, como na Serra da Lousã, tirar proveito económico da neve que, desde o século XVIII, era recolhida perto do Coentral e encaminhada para Lisboa por conta de Julião Pereira de Castro – para fazer gelados.

Interrogo-me há uma semana sobre o papel desta glaciação mediática, deste carnaval branco, deste furor invernal, esquecidos a crise, o terrorismo, o Irão e o tráfico de droga. (Já nem falo do desemprego.) Trata-se de informar, de variar, de divertir, de preencher um vazio, de instalar um ambiente pré-natalício? Jingle bells?... Sem dúvida um pouco disto tudo.


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Viver a rádio

Manuela Degerine

Não, estou a falar de outra coisa, rádio não é o que se ouve no carro, um sushi de 3 T, taças, tempo e trânsito; não é a rádio portuguesa. Em Portugal não consigo encontrar nada melhor do que as Antenas 1 e 2 – duas estações que, por razões distintas, não me satisfazem.

A Antena 1 é a rádio dos engarrafamentos: de manhã e à tarde. Os directores de programas não ouvem rádio, sem dúvida, por isso arrumaram-na no armazém das antiguidades, pensando que os portugueses também não ouvem, excepto quando se encontram presos no trânsito. Parece-lhes que ninguém ouvirá rádio por gosto e ainda menos por vício, mas apenas quando não tenha outra opção ou pior... outra maneira de matar o tempo. Por conseguinte, durante estas horas, as dos engarrafamentos, a rádio dá o melhor que tem e, entremeados com os 3 T, que se repetem, obsessivos, há uma ou outra crónica – que dura dois minutos. Lugares Comuns, às 9, O Senhor Comendador, às 19 horas. Por exemplo. Ou o Portugalex. E um ou outro debate, cortado, evidentemente, pelo estado do trânsito. Ou pela temperatura nas Penhas Douradas. (Não perceberam que os dez milhões portugueses se estão nas tintas para a interrupção da estrada entre Mosteiro e Vila Facaia. Ou para os menos dois graus nos píncaros da Serra da Estrela.) E o debate pode ser sobre futebol (à segunda-feira) ou, mais frequente, ser substituído por um desafio de futebol – claro. Esta rádio é apenas uma maneira de esvaziar as cabeças. É uma lavagem de cérebro. É na verdade uma forma de matar tempo. Fora destes momentos privilegiados de quase nada, a Antena 1 transforma-se em nada ao quadrado e, das dez à uma, das duas às seis, aos domingo e feriados, impõe os 3 T entremeados com música anglo-saxónica: na Antena 1 a cantiga não corre o risco de ser uma arma. Durante estas horas de máxima letargia, de acefalia comatosa, de Alzheimer radiofónico, quem abre e fecha as torneiras dos 3 T e da música é uma ou outra senhora que fica tristinha quando vê passar uma nuvem. As senhoras alternam com uma voz masculina (omitamos o nome), a qual despeja música quase sem comentários, nem sequer sobre o calor, tão bom para quem está de férias; devo-lhe contudo as mais belas pérolas da minha colecção. (Obrigada!) Por exemplo: numa tarde em que lançava uma entrevista (dois minutos) a propósito da edição do texto autobiográfico que inspirou o romance de José Saramago, este senhor terá ouvido ou lido mal, talvez lhe fizessem uma gralha, se calhar, de propósito (deve ser uma tentação para quem o rodeia) – e o título do romance de José Saramago metamorfoseou-se em Levantado do Balcão.

Com uma rádio destas, os portugueses que, ao contrário do que pensam os directores de programas, não são parvos – sim, os portugueses vivos e curiosos e maliciosos, que querem aprender, crescer, rir, informar-se, sonhar, ser estimulados – deixaram, claro, de ouvir rádio. (Não querem matar o tempo; preferem vivê-lo.) E têm razão: esta rádio é uma perda de cérebro. Por isso, quando me irrito com a rádio portuguesa, encontro uma uniforme indiferença; há muitos anos que os meus interlocutores não sabem o que é isto... Mesmo no carro, eles ouvem música.

Resta a Antena 2. Que tem, uma ou outra vez, bons programas. O maior defeito da Antena 2 é que não fala. Ou fala pouco E eu gosto de palavras. Quero uma rádio que fale comigo. Por isso, entre o futebol (Antena 1) e a ópera checa (Antena 2), não escolho: desligo o aparelho. Prefiro pensar em silêncio. Prefiro ler (se for possível). Prefiro ouvir um CD. Ou, na maior parte das vezes, ouvir a rádio France-Culture – ah, sim: graças à Internet. Ou, nos momentos em que, mesmo vivendo em Lisboa, sinto saudades de Portugal, oiço a rádio Amália; a qual, ao menos, transmite música portuguesa.

Ao invés do que pensam os directores de programa, a rádio pode ser ouvida fora dos engarrafamentos. Se tiver uma rádio de qualidade, ligo-a logo que me levanto, oiço rádio enquanto tomo o pequeno almoço, oiço rádio no duche, oiço rádio à hora do almoço, oiço rádio enquanto janto, oiço rádio antes de me deitar... Oiço três horas quotidianas de rádio. E, se tiver uma rádio que me apaixone, me prenda, me cative – oiço ainda mais rádio.

Nos outros países, em França, na Inglaterra, por exemplo, a rádio continua viva, criadora, enriquecedora – e necessária. Fala-se de rádio nos jantares entre amigos. Em Portugal, quando protesto contra a nulidade da rádio, fitam-me com perplexidade. Rádio? Não sei, não oiço. Não admira. No entanto há tanta gente que gostaria de ouvir uma rádio inteligente... Os desempregados. Os que trabalham em casa. Os que sofrem de insónias. Os que ouviriam rádio no emprego, se... Os escritores que fazem uma pausa... E muitos outros. São milhões de perdidos auditores. Ou de auditores insatisfeitos. Ou de auditores descontentes.

Um serviço público?... Eu diria antes: um desmazelo público. E aquilo que menos me agrada na rádio portuguesa é, na verdade, a imagem de mim que parecem ter aqueles que a fazem. Não, obrigada!

domingo, 14 de novembro de 2010

Fotopoemas - O caminho

Texto de Manuela Degerine e
Fotografia de José Magalhães


Estou a escrever de memória. A fotografia de José Magalhães ficou na minha caixa do correio – em casa. E neste momento encontro-me numa estação do caminho de ferro: vou a Versailles. Vou a Versailles porque vi a fotografia de José Magalhães. Não tentei resistir: vou a Versailles.

Até há cerca de um ano, o parque de Versailles era, não propriamente o meu quintal, mas algo de muito familiar. Logo que inventava três horas livres, pegava na bicicleta, apanhava o comboio e, vinte minutos mais tarde, saía na estação de Versailles. Rue du maréchal Foch, boulevard de la Reine... chegava ao parque. Atravessava, sem parar, a Petite Venise, uma Veneza ínfima, na verdade, ponto de encontro dos turistas, por ter parques de estacionamento, um restaurante, vários quiosques, aluguer de barcos, bicicletas e Segway... Um espaço onde cheirava a crepes e café. Eu buscava outros odores. No outono e inverno, os cogumelos, a terra húmida, as folhas caídas, no fim da primavera, as flores de tília, uma ou outra vez, a relva recém-cortada e, em todas as estações, a bosta de cavalo: o parque é vigiado por polícia montada e alguns trabalhos florestais são realizados com cavalos.

Prosseguia à beira do Canal na direcção da Ferradura (Fer à Cheval). Lembro-me de, há dois ou três anos, a água do Canal ter gelado e haver, neste sítio, uma perseguição de cisnes: um namoro com patinagem aparatosa por cima do gelo. Fer à Cheval tem, no cimo das escadas, o Trianon. Eu continuava na direcção da Estrela (Étoile), desdenhava a pradaria à direita, torcia o pescoço à esquerda para avistar, muito ao fundo, quase minúsculo, no outro extremo do Canal, o palácio. Subira até chegar à Étoile – há pequenas encostas – e descia depois na direcção da Ménagerie, o espaço onde viviam os animais exóticos... e que agora serve de residência ao Presidente da República. Antes de chegar à Ménagerie, os ciclistas encontram duas opções: os que se poupam cortam pela beira do Canal, enquanto os mais desportistas sobem uma encosta, passam por detrás de um dos braços do Canal e, do outro lado, descem – vertiginosa e ludicamente – a simétrica encosta. Eu, cela va sans dire, pedalava encosta acima. Como a Ménagerie se tornou uma das residências, digamos, de campo, do Presidente de República, encontram-se nesta zona, distribuídos pelos caminhos e alamedas que a rodeiam, vários carros de polícia, cujos ocupantes matam o tédio mirando... as ciclistas; ao fim de algum tempo, eu já os conhecia, cumprimentava-os ao pedalar. E, claro, lançava-me encosta abaixo, pelo lado direito, prevenindo-me de algum preguiçoso que, depois de cortar pela beira do Canal, se atravessasse à minha frente. Não queria travar mas chegar o mais longe possível antes da primeira pedalada, uma distância muito variável, consoante o vento, favorável, contrário, lateral, forte, fraco... Seguia na direcção do Lago de Apolo, passava à frente dele, muito devagar, de pescoço torcido à direita, para admirar o palácio, seus lagos, estátuas, arbustos e turistas. (Há muitos anos, durante uma formação em Versailles, na hora do almoço, enquanto os colegas se fechavam numa pizaria, caminhei por ali, vendo um grupo de crianças a brincar dentro do lago, completamente gelado, enquanto caíam pesados farrapos de neve.) No Inverno as estátuas são embaladas numa tela esverdeada que as protege das intempéries. E as torna não menos belas... Dali à Petite Venise, o meu ponto de partida, é um instante. Completava assim a primeira volta: que não durara menos de quarenta e cinco minutos. Geralmente percorria mais duas vezes o perímetro do Canal. No entanto, nas épocas em que o terreno se encontrava mais enxuto, não olvidemos que Versailles foi construído num pântano, substituía uma das voltas pela excursão através do parque, que tem rebanhos de ovelhas, prados com vacas e cavalos, campos de milho, bosques, alamedas conduzindo à Horta do Rei ou à Aldeia da Rainha... E caminhos como este.

Estou a escrever de memória, não tenho a certeza se a fotografia mostra árvores de folha caduca. (Lembro-me da hera subindo pelos troncos.) Creio todavia que há muitos ramos coloridos e outros já sem folhas. As cores dominantes são o verde e o ruivo com, aqui e além, pequenas manchas douradas. O ouro é da luz ou das folhas?... De ambas, decerto... (Espero não deformar a imagem.)

Em Portugal quase todos os bosques são constituídos por pinheiros e eucaliptos, tornando-se portanto, com a erva e os fetos, mais verdes no inverno do que no verão; pode contudo ser de um dos caminhos que percorri este ano através do Minho. No outono, em Versailles, também nos podemos – quase – perder através de túneis de ramos e folhas... Como este. No parque há faias, freixos, tílias, plátanos, aveleiras, carvalhos, castanheiros e numerosas outras variedades de folha verde na primavera e no verão, colorida de maneira patética e luminosa no outono e, no inverno, ainda colorida, embora de maneira subtil: à beira de todo o Canal, as tílias, podadas, expõem à luz uma fechada vermelha constituída pelos rebendos das futuras folhas. Neste tipo de floresta as minhas estações preferidas são o outono e o inverno.

Inúmeras vezes prolonguei o passeio à beira do Canal até ao momento em que, com o pôr do sol, o real e o imaginário se confundem. O lusco-fusco... Mas não mostrará esta fotografia um nascer do sol?... A vida citadina raras vezes nos proporciona a contemplação da alvorada. Claro que, sobretudo no Inverno, nos levantamos todos muito antes – porém raro assistimos ao espectáculo. Devo o nascer do sol, quantitativamente, a um espaço de tortura – o último liceu onde dei aulas. Várias vezes cada ano, juntas as necessárias condições, hora e estado do tempo, no instante em que atravessava o parque de estacionamento, muito comprido, vi, lá ao fundo, o vermelho jorrar através do céu. Momento de euforia antes do horror. Costumava dizer a outros condenados, único comum reconforto, este liceu tem três coisas boas, os colegas, o nascer do sol e... o Carnaval. Mas isto já é outra conversa... (Para além de ser passado.) E cheguei à estação de Versailles.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine


Capítulo CXXI

Epílogo

A mulher que via passar os comboios (conclusão)

- Interessa-me. E até os leitores fazem perguntas... A última vez que dei notícias, querias sair daquela varanda. Em Pontevedra… Nos dias seguintes andei atrás de ti no Caminho de Santiago. Caminhas mais depressa do que eu, perdi-te de vista à saída de Rio Tinto. E não te encontrei nos albergues… Dormiste onde?

- Não tens nada com isso.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra 120



Manuela Degerine

Capítulo CXX

Epílogo

A mulher que via passar os comboios

Cheguei ontem de Santiago de Compostela. Neste momento desço a Almirante Reis, atenta a quem por mim passa, não apenas por, nesta avenida, a atenção ser necessária, mas igualmente por curiosidade. Não conheço em Paris nada que se assemelhe a esta avenida... Há as prostitutas, não apenas as profissionais do Largo do Intendente que, não raro, vão e vêm, mas também uma ou outra, em fim de carreira que, de vez em quando, tenta por aqui o negócio; e, claro, lá em baixo, na esquina da Rua da Palma com a de S. Lázaro, encontram-se várias de serviço. Há os clientes. Há os chulos e seus assessores. Há os sem-abrigo, cuja cantina se situa em frente da igreja dos Anjos e, por esta razão, pouco daqui se afastam. Há os drogados, com ou sem abrigo, arrumadores ou não de carros, muitos discretos, alguns excitados, não poucos buscando financiamento, outros alheios a qualquer realidade, um parece dormir no meio do passeio, uma arruma o entulho dentro do contentor... Há os vendedores de droga e seus adjuvantes. Há os bêbedos que transbordam das tascas para o passeio. Há romenos assaltando os passantes e romenas arrecadando a receita. Há comerciantes chineses e indianos, há clientes indianos e chineses. (Não confundir os romenos com os indianos. Quanto às romenas e indianas, exclui-se qualquer confusão.) Há os chineses das limousines e seus guarda-costas. Há africanos de todas as origens, atraídos por acasos, tráficos e convívios. Há as brasileiras novas com portugueses velhos. Há as donas de casa. Há os clientes dos cafés, cervejarias, restaurantes e marisqueiras. Há os turistas dos hotéis. Há brasileiros de chinelo, senhoras de chapéu, gente tatuada e perfurada. Há pais que vão buscar os filhos à escola. Há o arquivo fotográfico, seus artistas, técnicos e visitantes. Há a Misericórdia, há as associações. Há os empregados e clientes de supermercados, lojas de fruta, material de cozinha, electrodomésticos, bugigangas, móveis novos e em segunda mão, roupa nova e em segunda mão... Para abreviar, digamos: há de tudo nesta avenida.

sábado, 25 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo CXVIII

Conclusões

Estou a escrever no dia 10 de Setembro de 2010. Regressei há quatro meses e reintegrei-me na vida lisboeta. Quase como antes.

Impõe-se agora questionar:

- O que resta do Caminho de Santiago?

Em primeiro lugar houve um considerável alargamento da minha terra. Até aqui eu conhecia a região de Lisboa, Tomar e os arredores, Sarzedas do Vasco e seu enquadramento, as paisagens do Alentejo, alguns espaços da orla costeira, os museus e cidades do centro e sul do país... Conhecia melhor Portugal do que a maioria dos outros portugueses; mas seguindo sempre pelas estradas. O Caminho de Santiago deu-me outro ponto de vista.

O património de um país não se encontra apenas em museus, monumentos e espaços protegidos pela Unesco; a travessia de Lisboa a Valença revelou-me paisagens de um inestimável património natural. Os percursos entre Arneiro das Milhariças e Fátima tal como entre Barcelos e Valença foram os supremos momentos desta descoberta. (Chorei diante da televisão quando, em Julho e Agosto, vi arder as florestas por onde passei.)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine


Capítulo CXVI

Vigésima sexta etapa: em Santiago de Compostela (continuação)

Percorro a cidade tentando ultrapassar um mal-estar que, em certos momentos, chega a ser vertigem. Nunca sofri de agorafobia mas aqui há instantes durante os quais, presa na multidão, no aperto de uma rua, preciso de fechar os olhos, respirar com calma – a angústia acalma-se.

Subimos à Oficina do Peregrino, na Rua do Vilar, para requerer a compostela. Pensava não a pedir, todavia agora, acompanho Sérgio; saio com ela na mão. Mais um diploma, afinal, nem mais nem menos importante do que os outros... Nenhum me obrigou a transpirar tanto e, vendo bem, não é certo que, para obter os outros, aprendesse mais.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo CXV

Vigésima sexta etapa: em Santiago de Compostela

De Ponte de Lima até aqui, isto é, desde que há albergues, pouco nos inquietou a localização, entre sinais e indicações do roteiro, lá nos dirigimos sem hesitar. Por isso e – sem dúvida – por não querer pensar no fim da viagem: não preparei a chegada a Santiago de Compostela. Prepará-la seria informar-me, tanto nos albergues precedentes como entre os peregrinos, sobre as características e localizações dos diferentes albergues. Falaram-me de um situado por detrás da catedral, Sérgio dispõe de uma direcção que lhe corresponde; procuramos. Depois de várias idas e vindas, com as mochilas, claro, mais os vinte e dois quilómetros com elas percorridos, evidentemente, após ziguezagues, questionamento de habitantes e empregados de lojas, quando lá chegamos, declaram-nos que o pretendido se encontra fechado.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo CVI

Vigésima quarta etapa: em Brialhos

Chega um grupo de quinze ciclistas portugueses. São funcionários da CP e vêm de Coimbra, Águeda e Mealhada. Inicialmente havia um dormitório masculino e outro feminino; com a chegada deles, numerosos e todos homens, deixa de haver distinção. (A vantagem dos dormitórios separados é que, em geral, as mulheres ressonam muito menos...)

Pago também o albergue e depois sento-me a escrever. Converso com uma alemã que estuda, através do programa Erasmus, numa universidade galega. Juntando o fim-de-semana e um feriado (segunda-feira), faltando dois dias às aulas, planeou percorrer, com outros colegas mais dois mexicanos (que entretanto conheceram) o caminho de Tui a Santiago. Pretendem chegar no domingo e por isso têm-se apressado. Hoje saíram de Redondela e calcorrearam duas etapas; ora, quando chegaram aqui, cansados como vinham – só restavam três lugares. As raparigas ficaram mas, embora tontos de cansaço, os rapazes prosseguiram na direcção de Caldas dos Reis. Isto por causa dos ciclistas que bem podiam ter continuado até Caldas...

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Hoje falei com o Sérgio Godinho

Manuela Degerine

Não pertenci à categoria de adolescentes que cobria as paredes do quarto com imagens dos ídolos. Eu naquela época escrevia poemas-de-álvaro-de-campos ao quilómetro e à compita com a Ana Rodrigues; uma amiga. Reuníamo-nos para ler uma à outra as respectivas obras que achávamos quase tão geniais como as do Poeta. (Anos mais tarde, os textos pareceram-me insuportáveis e, talvez por revelarem, de maneira ingénua e sincera, facetas que preferia ignorar, deitei-os no lixo – o que agora lamento.)

Naquele tempo tão distante que sinto tentações de empregar o latim, in illo tempore cheguei a ter na mão uma fotografia de Fernando Pessoa porém, em vez de a pregar na madeira da estante, o primeiro impulso – arrumei-a numa gaveta. É que, então, para mim, o poeta futurista não se podia confundir com aquele bisavô de chapéu. O Álvaro de Campos continuava a ter constipações e dúvidas metafísicas, era meu contemporâneo e, compreendo agora, por me falar de mim, não podia ter rosto.

A Manuela Degerine diz: "Hoje falei com o Sérgio Godinho" - e não é que o trouxe ao Espaço VerbArte?

Manuela Degerine


Não pertenci à categoria de adolescentes que cobria as paredes do quarto com imagens dos ídolos. Eu naquela época escrevia poemas-de-álvaro-de-campos ao quilómetro e à compita com a Ana Rodrigues; uma amiga. Reuníamo-nos para ler uma à outra as respectivas obras que achávamos quase tão geniais como as do Poeta. (Anos mais tarde, os textos pareceram-me insuportáveis e, talvez por revelarem, de maneira ingénua e sincera, facetas que preferia ignorar, deitei-os no lixo – o que agora lamento.)

Naquele tempo tão distante que sinto tentações de empregar o latim, in illo tempore cheguei a ter na mão uma fotografia de Fernando Pessoa porém, em vez de a pregar na madeira da estante, o primeiro impulso – arrumei-a numa gaveta. É que, então, para mim, o poeta futurista não se podia confundir com aquele bisavô de chapéu. O Álvaro de Campos continuava a ter constipações e dúvidas metafísicas, era meu contemporâneo e, compreendo agora, por me falar de mim, não podia ter rosto.

Descobri na mesma época as canções de Sérgio Godinho. Perguntará o leitor: qual a relação?... Pois: tal como o Álvaro de Campos, o Sérgio Godinho emprestou-me palavras para a conquista de mim. As suas canções dizem a poesia, a revolta, o amor, a liberdade... Traçam um percurso que, não raras vezes, se cruzou com o meu.

Ouvir uma canção, ler um poema ou um romance, é entrar em colisão com a singularidade de um autor, por isso todos vivemos grandes paixões com os nossos autores preferidos. Durante a adolescência o meu coração balançou muito entre o Álvaro de Campos e o Sérgio Godinho; comparados com eles, os colegas do liceu diziam-me frases bem triviais...


segunda-feira, 12 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo XXXVI

Inquietude

No dia 1 de Maio volto a Tomar. A viagem é mais demorada do que eu previa: por causa das obras na linha, há transbordo para autocarros. Chego a casa às onze da noite e só então começo a preparar as bagagens para o Caminho de Santiago…

Planeava partir com a mochila das primeiras etapas, logo uma observação rápida me obriga a desistir: uma das anilhas parece prestes a soltar-se. Mais uma… Impõe-se por isso levar a outra, mais pesada, mais desconfortável, mais malcheirosa, mesmo no primeiro dia, por absorver a transpiração – mas mais resistente. Desta vez quero ir tão longe quanto puder. Portanto, de preferência: até Santiago de Compostela.

domingo, 11 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo XLV

Décima terceira etapa: em Albergaria-a-Velha.

No rés-do-chão do centro paroquial há uma grande divisão na qual, de um lado, vemos fogões a gás, uma grande mesa, sacos e bagagens, de todos os tamanhos e variedades, do outro lado, os peregrinos descansam em colchões encostados uns aos outros: prostrados e com os pés a sangrar. Uma senhora vai, com uma caixa de meio metro cúbico cheia de medicamentos, por ordem, de um para o outro, fazendo curativos. (Mais de cinquenta pés: passará nisto toda a tarde.)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo XLI

Décima primeira etapa: na Mealhada

A rapariga desculpa-se por não ter avisado: há no ginásio, das oito às nove, um jogo de básquete, por conseguinte, como é necessário varrer o chão, pois há, aqui e além, excrementos dos pássaros, convém começarmos a arrumar as bagagens. Não é o que mais nos apetece neste momento... Claro que sorrimos à rapariga, declaramos não haver problema, arrumamos tudo, sem demoras; os bombeiros não são obrigados a acolher-nos e, num ginásio, é mais natural jogar básquete do que dormir e secar roupa. Enfiamos as camisolas, cuecas e peúgas em plásticos, dobramos os sacos-cama, pomos tudo nas mochilas, arrastamos os colchões para o canto onde os encontrámos e, depois do que caminhámos durante o dia, resignamo-nos a calcorrear a cidade.

Ao fim de meia hora, demos a volta completa à Mealhada, uma hora depois, palmilhámos duas vezes as ruas do centro, tirámos meia dúzia de fotografias, mirámos todas as montras, admirámos na pastelaria os bolos de aniversário, entrámos num café para comprar sumos de fruta... Falo à Maria do Luso, do Buçaco, dos vinhos e dos leitões da Bairrada; mas não fazem parte desta viagem. (E até, no que me toca, cochinillo... Não gosto.) As ruas estão desertas. Sentimos frio. Sentimo-nos cansadas. Apesar disto tudo, rimo-nos da situação, cada vez mais cómica…

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra-39

Manuela Degerine



Capítulo XXXIX




Décima primeira etapa: Maria.





Encontro-me às nove horas, na mesma Praça do Comércio, com a rapariga da véspera. Falamos em espanhol: boa ocasião para eu praticar o que aprendi, já lá vão tantos anos, na universidade. Maria tem trinta e quatro anos, vive em Málaga e é professora de inglês. Vai no quarto caminho de Santiago todavia, nos anos precedentes, seguiu sempre o Camino Francés. Agora começou em Lisboa porém, por falta de tempo, fez de autocarro o percurso entre Fátima e Coimbra. As primeiras etapas, em particular quando atravessou o vale do rio Trancão, assustaram-na pois, a certa altura, um carro com três indivíduos acompanhou-lhe, durante uma eternidade angustiosa, o ritmo da caminhada; quando por fim, sem ela perceber porquê, eles desandaram, já Maria se via nos piores apuros. Ser roubada é sempre aborrecido, pior que tudo é ser violada: Maria está hoje radiante por encontrar companhia.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra - 36


Manuela Degerine

Capítulo XXXVI

Inquietude

No dia 1 de Maio volto a Tomar. A viagem é mais demorada do que eu previa: por causa das obras na linha, há transbordo para autocarros. Chego a casa às onze da noite e só então começo a preparar as bagagens para o Caminho de Santiago…

Planeava partir com a mochila das primeiras etapas, logo uma observação rápida me obriga a desistir: uma das anilhas parece prestes a soltar-se. Mais uma… Impõe-se por isso levar a outra, mais pesada, mais desconfortável, mais malcheirosa, mesmo no primeiro dia, por absorver a transpiração – mas mais resistente. Desta vez quero ir tão longe quanto puder. Portanto, de preferência: até Santiago de Compostela.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo XXXV

Passeio pelos museus (conclusão, por ora)

Museu Nacional do Azulejo: O vermelho e o preto

O Museu do Azulejo expõe um trabalho intitulado Casa Perfeitíssima, 500 anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus, 1509-2009. Esta exposição – de paredes vermelhas, uma cor aqui, esta sim, muito significativa – centra-se na figura da fundadora, a rainha D. Leonor, esposa de D. João II e irmã de D. Manuel I, fundadora não só deste convento mas também das Misericórdias e do Hospital das Caldas da Rainha. O conjunto é composto por peças encomendadas pela rainha, oferecidas à rainha ou, de alguma maneira, significativas do ambiente cultural e religioso em que ela viveu. Por exemplo: a Noticia da Fundação do convento da Madre de Deos de Lisboa das religiosas descalças da primeira regra de nossa Madre Santa Clara, publicado em 1639. Ou a tapeçaria de lã e seda, fabricada em Bruxelas, representando o Baptismo de Cristo, uma encomenda de D. Leonor para o convento. Ou o Retábulo das Sete Dores da Virgem, do pintor flamengo Matsys, por ela comprado para o altar da igreja.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo XXXIV

Passeio pelos museus:

Museu Nacional de Arte Antiga e Museu Nacional de Arqueologia

No Museu de Arte Antiga demoro-me diante de uma vista de Goa no século XVII, de um mestre desconhecido, localizando a praia de Chapora, onde passei dois meses, o forte de Aguada, onde tanta vezes fui... Pintado em Goa no século XVI, o retrato de Afonso de Albuquerque continua a impressionar-me pela força e autoridade que dele emana – ao lado, D. Francisco de Mascarenhas é apenas uma imagem oficial.

Este museu é um festival da língua portuguesa: encho duas páginas com palavras. Selecciono agora o ceboleiro, recipiente onde germinam os bolbos (de jacinto, por exemplo), as doceiras e compoteiras, pelas delícias que evocam, o ventó, caixa-escrivaninha indo-portuguesa... Detenho-me a ver pratos de religiosas aristocratas com o nome e as armas da proprietária: SOROR BRITES THEREZA DEIEZUS. Isto é... Soror Brites Teresa de Jesus. Revejo as naturezas-mortas de Antonio Pereda y Salgado, há pouco expostas na fundação Calouste Gulbenkien, passo pela Salomé de Lucas Cranach, reparando na aparência daquela rapariga: nossa contemporânea no trajo e penteado, se apanhasse o Metro, chamava a atenção apenas por ser bela e elegante. Imobilizo-me em êxtase perante o retrato de um aristocrata pintado em 1700 por Nicolas de Largillière: o vermelho da capa, o ouro da casaca, o branco da cabeleira, o gesto e o olhar... tudo é superlativamente espectacular. Rococó, claro! E concluo a visita fotografando, é claro e evidente, duas esculturas que representam Santiago.

No domingo seguinte vou ao Museu de Arqueologia. Começo pela exposição sobre os vestígios, encontrados na Quinta do Rouxinol, perto de Corroios, de uma olaria romana com actividade ao longo de 250 anos, que produzia ânforas, telhas, loiça, lucernas... Trago para casa a palavra lucerna, de que muito gosto, tomo até a decisão de escrever um texto com palavras encontradas nos meus passeios de domingo, aponto uma citação de Duarte Nunes de Leão (Descrição do Reino de Portugal, 1600, capítulo XIII, folha 34 v°): Outra coisa tem o Tejo com que se avantaja de outro rios de Hespanha, que é da grossa pescaria que nele se faz de diversos géneros de pescado. As ânforas destinar-se-iam portanto ao transporte de pastas e molhos à base de peixe e marisco de que os romanos eram muito apreciadores.

Nas Antiguidades Egípcias miro os sarcófagos de Irtieru e Pabasa, oiço conversas de outros visitantes, tá bem pintado, não tá?, aponto uma passagem do Livro dos Mortos (do capítulo 125): Não blasfemei contra os deuses / Não roubei os bens do pobre / Não fiz sofrer / Não fiz passar fome / Não fiz chorar / Não matei / Nunca fiz mal a ninguém. Também está bem dito. (E bom era se, trinta e cinco séculos mais adiante, isto começasse a ser praticado.)

A secção Tesouros da Arqueologia Portuguesa expõe a técnica, estética e funções dos metais preciosos da pré-história à época romana. Miro a estátua de guerreiro usando um torque semelhante aos que, em ouro, aparecem expostos, divertem-me os comentários de alguns camponeses suíços... Expressão dubitativa e hesitante de quem não compreende por que carga de água dão, naquele museu, tanta importância a anéis, colares e pulseiras:

- Agora podia-se fazer isto tudo!

Concluo a visita na exposição Religiões da Lusitânia perante os quatro varrões ou berrões de Cabanas de Baixo. Imagens de fertilidade?... Regresso a casa. A Lusitânia permanece para mim obscura e esta exposição, pouco explicativa, não me ajuda a esclarecer nada.