domingo, 5 de dezembro de 2010

Semana do Ensino - Duas profissões

Manuela Degerine

A Educação Nacional francesa fez de mim, nos primeiros quinze anos, uma professora feliz. O objectivo era a aquisição de conhecimentos, a descoberta e desenvolvimento das potencialidades de cada aluno; eu participava nesta tarefa através do português e da cultura dos países lusófonos. Dei aulas em mais de dez escolas diferentes pois como, em cada uma, não havia um número suficiente de alunos para o horário completo, trabalhava no mínimo em duas cada ano; uma delas era o liceu de Colombes.

No decénio e meio passado no liceu de Colombes fui – repito – uma professora feliz. Gostava dos alunos, gostava dos colegas, gostava da escola, gostava de ir de bicicleta para o trabalho... Podia ter-me candidatado ao ensino superior mas nada me interessava mais do que trabalhar com aqueles jovens. Não tinha a sensação de vender o meu tempo; não havia fronteira entre o trabalho e a vida. Era professora vinte e quatro horas por dia. O que lia, sonhava, descobria, a rádio, a música, os filmes, os museus, as viagens, os encontros, as conversas – tudo ia parar, de uma ou de outra maneira, à sala de aula. Lembro-me de acordar, a meio da noite, para acrescentar um texto ou um pormenor a uma aula... Lembro-me de turmas que entravam neste jogo: eu apresentava um poema de D. Francisco Manuel de Melo avisando, se for difícil, não há problema – passamos a outra coisa. Eles provavam que não era difícil, reclamavam mais D. Francisco Manuel de Melo. Eu levava um pedaço d'O Fidalgo Aprendiz. Eles queriam mais...

É um exemplo, podia dar trinta. No mínimo. A inteligência, a adesão, a curiosidade, a cumplicidade dos alunos permitiram-me descobrir e inventar durante quinze anos. Nunca enviei uma queixa aos pais através da caderneta – não foi necessário. Orgulho-me de ter conseguido motivar dezenas de alunos desmotivados. Orgulho-me de, ainda hoje, os alunos de Colombes – e muitos de outra escolas – me continuarem a escrever. Ah, que bom era aprender português!

E que bom era ser professora...

Passados quinze anos, por razões de gestão do pessoal, mudei de zona; e entretanto também mudou a gestão de recursos (ou da falta deles) na Educação Nacional. Encontrei-me no liceu de Sartrouville... Descobri outra profissão. Turmas de trinta e cinco, trinta e sete adolescentes. Alunos hostis. A administração: salve-se quem puder. Passei a ser insultada todos os dias. Passei a receber ameaças dos alunos e – pior – dos pais dos alunos. Não todos, claro, uma minoria; suficientes para tornarem esta profissão perigosa. Pelo stress. Pela violência. Pela perda de tempo, isto é, de vida. (Quem vende tempo é sempre enganado.) O objectivo, seja qual for o parlapatéu dos programas, tornou-se apenas este: ocupar o máximo de jovens durante o máximo de tempo com o mínimo de meios. Pouco importam os verdadeiros resultados; todos passam nos exames, basta baixar as exigências. E todos os anos – ou quase – elas baixam... Em tais circunstâncias convém usar a demagogia e não pedir esforços. Tornei-me uma professora demasiado exigente por propor textos do Mário de Carvalho. Por conseguinte... arrumei a literatura na estante. Esta escola pretende ser lúdica – para quem? Não creio que os alunos se divirtam; e os professores ainda menos. Todos perdem tempo. Todos se sentem perdidos.

Não é o que digo?... Outra profissão.

2 comentários:

  1. Bonito Manuela, é mesmo por isso que vale a pena que a profissão de professor volte a ter a reputação que já teve e, a escola, seja o lugar onde todos sonham, mesmo os que parecem que lhe passam ao lado. É preciso mudar o que tem que ser mudado, manter o que tem que se manter e ter a inteligência de saber optar.É dificil mas tem que ser, nem sequer é a primeira nem será a última organização a encontrar novos caminhos.

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  2. Fui mais feliz, Manuela. Durante os meus trinta e seis anos de trabalho só tive a primeira experiência. Pergunto-me, hoje , se ainda estivesse a ensinar , se teria sido assim.
    Como aluna, num ensino completamente diferente, poucas ou nenhumas boas recordações tenho. Como professora, não tenho uma má recordação.
    E a propósito vai um pequeno texto de um livro que escrevi dirigido aos meus alunos.

    Aulas vividas na mais franca liberdade
    nem sequer a barreira da idade
    nunca a intolerância a paciência venceu
    nenhuma falta de respeito, nem falta disciplinar.
    Soubemos todos aprender, e uns aos outros ensinar
    o mundo de alegria, essa página da vida que à vida
    se pode dar.

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