sábado, 29 de maio de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo III

Etapa 1, até Vila Franca de Xira
Segunda parte: Do Parque das Nações a Alverca

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra


Devera apanhar o metro e voltar para casa, sensato seria, pensa o leitor e tem razão, porém eu sou filha de uma obstinada, duplamente obstinada, por ela e por mim; e uma optimista. Por conseguinte teimo: é impossível estas botas fazerem bolhas nos pés, a forma e a função, os materiais estudados em laboratórios, logo, posso estar enganada, ilusão psicossomática, contradição inconfessada, desejo mas também temo lançar-me nesta aventura.

Ora bem... Quatro quilómetros e meio para Sacavém. Sete para Alpriate. Dois e meio para a Póvoa de Santa Iria – onde há uma estação. Então não hei-de caminhar treze quilómetros? Com umas botas, não de sete léguas mas, garante o folheto que as acompanhava, tecnologicamente adaptadas? Os peregrinos da Idade Média iam menos bem calçados. Avanço, portanto. A ponte Vasco da Gama, sua beleza alada. O Passeio do Tejo, o Passeio do Sapal. Caminho num tabuado. Ao meu lado direito, areia, ervas, lama e gaivotas: o referido sapal. Chego ao extremo do Parque das Nações; circulam ainda por aqui alguns ciclistas. Passo a um caminho de areia, atravesso um parque de estacionamento, viro costas ao Tejo, encontro-me à beira do rio Trancão, numa zona bem cuidada, com madressilva e outras plantas, atravesso uma esplanada, avisto uma igreja, tenho à direita o Trancão, atravessado por uma ponte semicircular, paro num cruzamento, antes de atravessar a outra ponte que, parece-me, pelo mapa, separa Sacavém da Bobadela. Sabendo que, a partir de agora, entro num território sem cafés, lembro-me de comprar duas sanduíches e outra garrafa de água, um pouco inquieta, que qualidade encontrarei, devera trazer o necessário, pensei nisto em casa, não me apetecia pão rijo, comprado ontem, entro num café, assusto-me à entrada, quase recuo, azulejos e chocalhos, lixo no chão, em França que horrores me venderiam neste sítio, se acaso existisse, aqui os bolos têm contudo bom aspecto, peço para ver o pão, parece-me também bom, propõem sandes com presunto, demasiado salgado, paio e queijo flamengo, pode ser, inquiro se há queijo alentejano, não há, da ilha podem arranjar, é um instante, suplico que não ponham manteiga, vendo a embalagem de margarina já aberta. Atravesso a ponte com o saco mais pesado. Graças às setas amarelas do Caminho de Santiago e à sinalização azul do Caminho de Fátima, encontro um atalho arenoso por onde sigo, o qual contorna o parque de estacionamento de uma empresa, passa debaixo de uma conduta verde, fura através do vale, estreito mas vasto, paralelo aqui à auto-estrada. Sou agora a única caminhante. Eu a pé em baixo, através do sapal, à beira do rio Trancão, a auto-estrada lá em cima. Doem-me os pés, sinto calor; nenhum destes desconfortos diminui a euforia da liberdade e da descoberta. Acelerem lá em cima, como vos aprouver, deixem-me este espaço – mesmo tão degradado.

O cheiro do rio é espesso. Vejo um monte de entulho, um camião abandonado. Passam aviões com ruído. Apesar disto tudo, alheia a isto tudo, a vegetação cresce. Viçosa. Oiço cigarras, rãs, gaivotas, toda uma vida teimosa. Há juncos, canas e, à medida que avanço pelo vale, dou-me conta de não ser a única utente deste espaço. Muito mais discretas do que eu, quase camufladas em ruínas ou em construções que, por vezes, fazem pensar em gaiolas, meia dúzia de ripas, um oleado, entaladas entre o sapal e a encosta que conduz à auto-estrada, escondem-se ali vidas clandestinas. Não vejo ninguém mas oiço cães ladrar, galos cantar, ovelhas balir – e sobretudo vejo as hortas quase suspensas cultivadas entre a zona alagadiça e a encosta a pique: couve, alface, tomate. Vidas paralelas ao mundo lá de cima, cujos acessos sinuosos distingo agora através da encosta: como é que, mesmo no Verão, conseguem descer sem escorregar? E como é que aqui chegam? Atravessarão a auto-estrada? Avisto nos píncaros os telhados de algumas casas – haverá ruas? Meios de transporte?... São os abandonados de todos, excepto de eles próprios: provam-no estas hortas que lhes dão dignidade.

O sol queima. Decido-me a comer o que resta do chocolate; já derretido. Acabo de beber a primeira garrafa de água – tão quente que pudera fazer chá. Lamento não trazer dois ou três sacos com as apetecidas folhas.

Quando saio do caminho entre o Trancão e a encosta, encontro-me numa paisagem diferente. Enquanto tudo ali era verde e vivo, tudo aqui parece amarelo e morto por falta de água. Único elemento activo: as moscas. Picam tanto que utilizo o mapa como leque: para me defender. Sucedem-se as antigas casas rurais, abandonadas e em ruínas; sucedem-se os montes de lixo, sofás, móveis, entulho, sanitas... A polícia e as autoridades camarárias fazem parte do mundo lá de cima: o da auto-estrada que continuo por vezes a avistar.

Todos os roteiros do caminho de Santiago aconselham a posse de um bordão. Para os caminhantes se defenderem dos cães. Bem... Eu prefiro ter as mãos livres para pegar no mapa, na garrafa de água, na máquina fotográfica... E também prefiro manter uma aparência discreta, confundir-me, o mais possível, com a paisagem; a minha mascote de andarilha é o camaleão. Compra um bordão telescópico, podes dobrá-lo, aconselhou o meu irmão. O mesmo aconselharia o leitor prudente... Não comprei. Pensei que não fosse necessário. De súbito, passado um lugar chamado Granja, junto a uma zona industrial: sou atacada por dois cães. Tento defender-me aos pontapés mas eles são dois e ferozes. Eu berro, as feras ladram, corre um homem, lança-lhes para cima o que tem na mão – calhou ser uma corrente. Os cães afastam-se. Toda eu tremo. Parece-me que, desde Sacavém, não avistei dez pessoas... Se este homem não tivesse surgido, naquele espaço tão deserto – eu tinha sido devorada. Atravesso um mundo sem autoridades, em que cada um se defende como pode; por isso tenho visto e ouvido mais cães do que homens. Os cães aqui servem para proteger. E para atacar.

Quando chego a Alpriate já bebi dois litros e meio de água. Quente, claro. Cada vez mais quente. A minha camisola começa a ter grandes manchas brancas nos ombros e no peito: o sal da transpiração. Compro mais litro e meio de água no único café-restaurante.

Os meus pés continuam a doer. Resisto à tentação de me sentar ao fresco: se me sento, sou incapaz de prosseguir. Sinto fome. Como as bolachas vitaminadas. Como as nozes. Como alguns figos que, com a sede, me parecem demasiado doces. Mais adiante, logo que encontrar uma sombra, sento-me um pouco, para descansar e comer uma sanduíche.

À saída de Alpriate vejo-me à beira de uma estrada, sem berma, com camiões a circular nos dois sentidos – por aqui não é possível sobreviver a cinco minutos de caminhada. Volto para trás. Descubro com alívio que me enganei no caminho, uma seta amarela indica o desvio da estrada, num caminho que passa através dos canaviais. Montes de lixo. O lixo é a constante deste espaço fora da lei. Vou até à Póvoa de Santa Iria sem poder poisar-me num sítio apetecível – tudo me parece demasiado sujo.

Apanho, não apanho o comboio? Estou a seis quilómetros de Alverca, por um caminho sem dúvida bonito, através de uma antiga zona de extracção de sal. Não resisto: continuo. E pode ser que encontre por lá a tal sombra onde possa poisar e comer a sanduíche. Atravesso por cima da linha do comboio. E de um esgoto como só na Índia e na China eu julgava poderem existir – por os ter visto. Pois...

Entro noutra zona vasta e desértica. De um lado, lá longe, à minha esquerda, as indústrias, do outro esta extensão plana. Não há árvores, só canaviais – portanto, sombras: nada. Como a sanduíche a caminhar. Cada vez mais exausta. Cada vez mais sequiosa. Incapaz de apreciar a beleza da paisagem. Devera ter comprado mais um litro de água. Urinei pela última vez no Parque das Nações, há mais de cinco horas, tornei-me um regador, tudo o que bebo sai na transpiração. Não tenho a camisola húmida mas parece, cada vez mais, que me despejaram uma lata de tinta branca pela camisola. O sol queima de maneira inquietante: vesti uma camisola de manga comprida, pus um boné e um lenço à volta do pescoço, besuntei-me com protector solar, contudo a cara e pescoço ardem. A meteorologia previu trinta e cinco graus em Lisboa – quantos haverá aqui? Sinto o coração a bater. Cansaço? Insolação? Devo parar e descansar? Ao sol? Mais vale avançar. Em Alverca encontrarei sombra e comboios.

Avanço.

Entro na estação de Alverca – vejo mesas e cadeiras. Miragem?... Não! Sento-me. Peço uma Água das Pedras. Fresca. Com a rodela de limão.

Bebo.

Peço a segunda.

Nunca provei bebida tão divina.

Recupero progressivamente a faculdade de pensar. Vejamos... Percorri dois terços do caminho, faltam menos de dez quilómetros para chegar a Vila Franca de Xira, não é grande distância, porém os meus pés, cujo estado quero por ora ignorar, não me permitem prosseguir: atingi o limite das minhas forças. Em vez de uma insolação, prefiro apanhar o comboio para Moscavide. Começarei a próxima etapa nesta refrescante estação de Alverca – com uma Água das Pedras.

Sinto-me quase escandalizada quando a máquina da estação me pede menos de euro e meio pelo bilhete. Tão pouco para tanto? Compreendo só naquele instante a que ponto o trajecto da ida não corresponde ao da volta. O comboio, o automóvel, o avião, distorcem-nos a percepção do espaço: ganhamos velocidade, perdemos visão. Eu hoje, através da caminhada, acedi a territórios e perspectivas que, de outra maneira, continuaria a ignorar. Os quilómetros que andei não correspondem aos quilómetros de um carro: não passam pelos mesmos lugares, não mostram as mesmas paisagens, não atingem as mesmas realidades, não produzem as mesmas sensações... Entrei noutra realidade.

E a ela quero voltar.

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