quinta-feira, 20 de maio de 2010
Proibição do véu integral em França . Defesa da dignidade da mulher ou ataque à sua liberdade individual
Frederico Mendes Paula
“A defesa patrimonial da laicidade é levantada pelos gauleses contra as mudanças culturais. Mas é difícil lutar contra essas mudanças quando trazidas pelos próprios franceses. Já não podemos brincar ao nós e eles quando são francesas convertidas ao Islão a usar o niqab”.
Muito se tem falado em relação á presença Islâmica na Europa, sobretudo em França, sobre o facto de os imigrantes tentarem impor os seus costumes enquanto estrangeiros mal agradecidos á sociedade ocidental, a qual os acolheu benevolentemente.
Vou-me centrar em França, país onde o debate está na ordem do dia e que personifica a meu ver a contradição ocidental entre tolerância e xenofobia.
Em primeiro lugar convém lembrar que a população de origem magrebina existente em França resulta do facto de os franceses terem colonizado os seus países durante décadas, concedendo posteriormente a esses povos o direito de viverem e trabalharem em França.
Em França, onde fazem o trabalho sujo que os franceses não querem fazer e onde pagam os seus impostos, que contribuem para pagar as reformas dos franceses.
Hoje em dia os franceses de origem magrebina são aproximadamente 5.000.000 de pessoas, quase 10% dos 65.000.000 de franceses, cidadãos de pleno direito desse país e maioritariamente muçulmanos.
Algumas das mulheres que professam a religião muçulmana, cerca de 2.000, usam o niqab, um véu que esconde a face, associado ao hijab ou ao xador, que lhes cobrem a cabeça e o pescoço.
Essas 2.000 mulheres representam cerca de 0,003% da população de França e 0,08% do total de mulheres muçulmanas francesas.
É deste “problema” que estamos a falar, ainda por cima com uma nuance _ a grande maioria dessas mulheres são jovens de origem magrebina nascidas em França ou francesas convertidas ao Islão.
Segundo as estatísticas existem cerca de 60.000 franceses convertidos ao Islão, a maioria dos quais mulheres, número que aumenta anualmente em cerca de 3.600 cidadãos.
Para “resolver este problema” o governo de Sarkozy vai apresentar um projecto de lei, que para muitos dificilmente terá pernas para andar do ponto de vista jurídico, pretensamente para defender a dignidade da mulher muçulmana.
Esse projecto de lei contém, de entre vários artigos, dois fundamentais:
O artigo 1 que pune com uma coima de 150 euros o uso de qualquer adereço destinado a dissimular a face no espaço público, podendo a coima ser substituída por um “serviço de cidadania”; o artigo 2, que está a ser fortemente contestado pela comunidade muçulmana, que prevê 1 ano de prisão e 15.000 euros de multa a quem “instigar” o uso de qualquer adereço que dissimule a face (este segundo artigo destina-se a abrir a porta á prisão de homens por denúncia de mulheres).
Na minha opinião o resultado prático desta lei, a ser aprovada, será o mesmo que teve a proibição do hijab nas escolas francesas em 2004 _ aumentou exponencialmente o seu uso entre as alunas de origem magrebina.
A própria falta de tacto com que Sarkozy está a lidar com o problema, apelidando o niqab de burqa, comparando os cidadãos muçulmanos franceses aos talibãs, chamando ignorantes aos franceses ao pretender que não sabem distinguir uma coisa da outra, mostra que a forma de o governo combater o fundamentalismo em França só vai contribuir para engrossar as fileiras dos obscurantistas “islâmicos”.
O aparecimento desta lei neste momento tem como razão desviar as atenções da população dos verdadeiros problemas existentes na sociedade, procurando um bode expiatório para a crise, e assim tentar reconquistar os votos que Sarkozy perdeu para a extrema-direita de Le Pen.
Se bem que algumas mulheres o utilizem por opção com justificação religiosa ou pressão dos maridos, a maioria utiliza-o como forma de contestação política e tomada de posição face aos valores do ocidente, que segundo elas, permite a degradação da imagem e dignidade da mulher, por exemplo aceitando a prostituição em lugares públicos e a pornografia.
Esta tomada de posição ideológica joga contra o próprio Islão e aumenta o sentimento de islamofobia por parte da sociedade ocidental que vê na religião islâmica, e diga-se que legitimamente, um factor de atraso social e de “marcha atrás” da humanidade no seu caminho para o progresso.
Não esquecer que fobia significa medo e é de facto o medo que motiva a xenofobia dos ocidentais.
Faço notar que do lado “islâmico” não estamos a falar de religião nem de espiritualidade, mas sim de obscurantismo, intolerância, ignorância, aproveitamento político e manipulação, que os integristas ou fundamentalistas não desperdiçam para cativar pessoas para as suas fileiras.
Os defensores do véu integral legitimam o seu uso invocando o versículo 59 da Surat Al-‘Ahzab do Alcorão, que diz:
“Ó Profeta! Dize a tuas mulheres e a tuas filhas e às mulheres dos crentes que se encubram em suas roupagens. Isso é mais adequado, para que sejam reconhecidas e não sejam molestadas. E Allah é Perdoador, Misericordiador.”
A interpretação manipuladora e imediatista do Alcorão, que estes sectores da sociedade fazem, esvaziando-o do seu misticismo, espiritualidade e carácter gnóstico, não vendo no Livro nada para além das letras, é certamente o maior inimigo da Religião Islâmica e dos Muçulmanos enquanto comunidade de crentes.
Em Dezembro de 2009, o recém-falecido reitor da Universidade de Azhar do Cairo, Muhammad Sayyed Tantawi, afirmou que o niqab, o xador e a burqa não são islâmicos, são signos tribais.
E proibiu o seu uso nas várias instituições dependentes da Universidade, seguindo-lhe outras instituições.
O uso do véu integral não é islâmico. Nem no Alcorão nem na Sunnah.
Aliás o véu constituía até meados dos anos 90 uma excepção dentro do universo islâmico, altura em que começa a generalizar-se por motivo da influência integrista, sendo inclusivamente imposto pelos regimes mais retrógrados como por exemplo pelo dos talibãs, curiosamente na altura financiados e apoiados pelos Estados Unidos da América.
O véu integral é assim uma tomada de posição ideológica que surge por reacção á própria incapacidade dos países islâmicos em acompanhar a marcha do progresso, em proporcionar aos seus cidadãos liberdade, democracia e justiça.
Constitui de facto um factor de atraso social, discriminação da mulher e é atentatório da segurança pública.
Mas este problema terá de ser resolvido no seio da comunidade islâmica e não imposto por falsos moralistas como Sarkozy.
Cabe aos muçulmanos separar as águas, afirmando o Islão como uma religião tolerante, como uma via para a espiritualidade da sua comunidade, compatível com uma sociedade moderna e como contributo para a coexistência entre os povos.
Cabe aos muçulmanos separar a religião da prática social, separar o poder espiritual de poder político, conferir independência ao poder judicial, defender o carácter laico do estado nos países Islâmicos.
Já há quem hoje em França se interrogue sobre qual será a atitude do governo em relação ás poderosas sauditas veladas que anualmente visitam Paris e esbanjam milhões nas suas luxuosas lojas. Irão pagar a multa dos 150 euros? E os maridos, milionários que alimentam poderosos negócios europeus, serão encarcerados durante um ano por instigarem as suas mulheres a encobrir a face? A ver vamos.
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