domingo, 8 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 8

Este é um posto que bem merece o nome de Porto Seguro. Lentamente todas as naves penetraram na enseada, seguindo as naus pequenas, guias seguras. Antes do entardecer já aqui estava toda a armada, formando um espetáculo de grande beleza, minha querida filha.

É uma alegria ver as velas assim amainadas nestas terras maravilhosas. Tudo isso te dá uma sensação de paz sem limites. A beleza da paisagem, o rigor dos verdes ramos densos, fazendo bosque logo na praia, a brancura das areias e o azul limpo dessas águas, junto com o monumental pacífico de nossas naves, tudo isso forma um espetáculo inesquecível. Queria que tu estivesses aqui, minha Maria, para poder gozar de tudo isso, assim como eu gozo e me deleito.

Estávamos assim, quando o Comandante mandou o piloto Afonso Lopes, homem vivo e competente, em um esquife para sondar o porto. Afonso Lopes assim o fez e mais ainda: trouxe a bordo dois daqueles mancebos que em meio a muitos outros estavam ali na praia e que em momento algum incomodaram os movimentos do piloto. Um dos jovens trazidos a bordo por Afonso Lopes conduzia consigo um arco e seis ou sete setas. Subido a bordo, e era já noite, Afonso Lopes conduziu os dois mancebos diante do Comandante.

O nobre Pedro Álvares Cabral recebeu os dois jovens sentado na sua cadeira de braços predileta. Sobre um estrado coberto por um tapete nos sentamos todos. Ao meu lado estava Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias; junto à cadeira do Comandante sentavam-se, de um lado e do outro, Sancho de Tovar e Simão Miranda. Aqui e ali os outros. Logo os dois jovens entraram, sem demonstrar nenhuma gesto especial de cortesia, tranqüilos, serenos, imutáveis na costumeira compostura. Não mencionaram nenhuma intenção de dirigir-se a qualquer pessoa em particular, nem mesmo ao Comandante.

Minha querida filha, logo muito me comovi vendo aquela gente. Alguma coisa de seus gestos, as suas caras belas e tranqüilas imediatamente me inspiraram uma profunda simpatia. Esses jovens são bem o retrato de toda essa gente. De feição, são pardos, tendente ao avermelhado vivo; de bons rostos e bons narizes. Em geral são belos de corpo, bem feitos. Andam sempre nus, sem coisa alguma que cubra suas vergonhas, sejam homens ou mulheres. Porém disso não dão nenhum sinal, pois que são de uma amabilíssima inocência de gestos. Os cabelos deles são lisos, corredios, geralmente com penteados especiais. Esses dois, por exemplo, e assim o fazem a maior parte deles, trazem os cabelos cortados e raspados alto, por cima das orelhas. Um deles, como deve ser hábito, trazia um berretinho de penas de aves, amarelas, muito bem feito, que lhe cobria a nuca e a orelha. Porém, essa espécie de berretinho de penas estava pegado aos cabelos pena por pena por meio de uma cera, o que fazia com que a cabeleira resultasse basta e redonda, de grande elegância.

Então os dois jovens entraram diante do Comandante sentado e de todo o nosso cortejo. O Comandante vestia um dos seus melhores trajes, com um colar muito grande e muito rico ao pescoço. Logo que eles se postaram diante do Comandante, tranqüilos e serenos, como já te disse, querida Maria, um deles fixou o olhar no colar de Pedro Álvares e começou a acenar para a terra e logo em seguida para o colar. Dessa mesma maneira se comportou quando viu um castiçal de prata. Todos esses gestos encheram de sobressaltos muitos dos nossos, minha querida filha. Então eu vi nos olhos de alguns de meus nobres companheiros desejos e ansiedades que não eram aqueles que eu gostaria que todos nós vivéssemos diante desta descoberta.

Logo depois, querida filha, passou-se um episódio que muito fez rir a companhia, porém a mim, mais que rir, encheu-me de admiração pela ingenuidade daquela gente. Alguns dos nossos apresentaram aos mancebos um carneiro e eles não fizeram caso do animal. Então, logo depois entrou um outro dos nossos trazendo consigo uma barulhenta galinha. À vista dela os dois jovens se espantaram, quase com medo, não querendo de maneira nenhuma tocá-la. Depois de grande insistência, tomaram dela, porém com grande espanto nos olhos.

O nosso desejo de saber era incontido. Então deram de comer aos dois mancebos: pão, peixe cozido, confeitos, bolos, mel, figos passados. Não quiseram comer quase nada de tudo isso. E se provaram alguma coisa, logo a cuspiram com nojo. Trouxeram-lhes vinho numa taça e, apenas haviam provado o sabor, imediatamente lançaram-no fora. Porém, logo depois mostraram como são, alegres e comunicativos. Um deles viu umas contas de rosário, brancas: mostrou que as queria, pegou-as, folgou muito com elas e colocou-as no pescoço. Logo em seguida, tirou-as e com elas envolveu os braços e acenava para a terra e logo depois para as contas e para o colar do Comandante, como querendo dizer que gostariam de trocar aquilo com alguma coisa. Muitos dos nossos, no fundo de seus corações, ao contrário pensaram que eles dariam ouro por aqueles regalos. Muitos já sonhavam muito no alto, via-se nos olhos curiosos que não se desatavam dos gestos dos dois mancebos. Muitos outros, gente de natureza desconfiada, pensaram que eles queriam dizer que desejavam levar aquelas coisas com eles, de qualquer maneira, coisa que não aceitariam fazer. Mas, logo depois, ele, o jovem que tudo isso dizia em grandes gestos, já que falarmo-nos não nos era possível, por desconhecermos nós a sua língua, e ele a nossa, logo depois ele devolveu as contas a quem lhe dera.

Grande e longo foi esse encontro. A noite já caíra completamente. Então, em determinado momento, eles se deitaram na alcatifa, sem nenhuma preocupação de cobrirem as suas vergonhas, as quais não eram circuncidadas, e sem desarrumar o custoso penteado que adornava suas grandes e jovens cabeças. O Comandante mandou pôr por debaixo da cabeça de cada um deles uma almofada, cobriram-nos com um manto. Isso eles aceitaram e logo adormeceram.

25 de abril, sábado, pela manhã

São tantas e tamanhas as emoções desse encontro maravilhoso, minha querida Maria, que nem mesmo o cansaço das azáfamas de bordo nos mantêm por muito tempo no refrigério do sono. Mal o sol se apresenta - e aqui o sol parece ser mais brilhante e a luz mais resplendente - e todos nós já estamos prontos para novos conhecimentos. Vive-se, minha caríssima filha, num estado de alegria constante, como se as nossas existências tivessem tomado de repente um novo sentido e as nossas almas, uma diversa intensa vibração. É como descobrir o paraíso que essa mesma alma conhecera outrora. O mesmo paraíso perdido e que agora ressurge. Vivemos a cada momento a emoção do paraíso recuperado. Doce, docíssimo é o espírito desse reencontro, minha Maria.

Muito cedo nesta manhã o nosso Comandante mandou que se fizesse vela na direção da entrada do novo porto. Esse é um ancoradouro tão grande, tão formoso e tão seguro que nele podem-se abrigar mais de duzentas naus. A nossa é uma grande armada, das maiores que reis cristãos jamais puderam organizar, porém, neste maravilhoso recanto - que não parece ser parte de nossa triste terra, tão belas são essas águas, essas praias, essas areias finíssimas e muito brancas, esses bosques, essas florestas - os nossos navios estão tranqüilos como se fossem somente um ou dois, não mais, e flutuam serenamente dentro dessas luzes, com essas cores que fazem mais belas nossas velas, debaixo da festa incansável de milhares de pássaros que cortam os ares formando maravilhosos desenhos sonoros.

Aqui, neste paraíso, tudo foi assim bem feito.

Então os capitães vieram à capitânea e daqui mandou Pedro Álvares que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias descessem à terra e levassem aqueles dois mancebos e os deixassem ir com os seus arcos e setas. Antes porém da partida o Comandante quis presentear a cada um deles com uma camisa nova, uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso. Os dois jovens logo colocaram nos braços o rosário de contas, num grande folgar de enfeites.

Junto com eles, mandou o Comandante que fosse um mancebo degredado, criado do nobre Dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro. Ele devia andar lá fora com os dois jovens da terra, mais ou menos da sua idade, procurando saber de seus usos e costumes, para assim, pouco a pouco, aprender a linguagem deles. Me parece que Afonso Ribeiro está já agora destinado na vontade de Pedro Álvares Cabral de ficar nessas terras depois da nossa partida. E a mim disse o Comandante de acompanhar Nicolau Coelho. Disso muito gostei, minha querida filha, porque Nicolau Coelho é um homem decidido e claro de gestos e sentimentos. Sempre observei o nobre capitão das Índias nesta nossa viagem. Parece-me que dele tudo podes esperar em tranqüilidade.

Fomos assim diretamente à praia. Então, querida Maria, tivemos a surpresa de encontrar uma multidão que nos esperava. Eram mais de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Maria querida, esses são momentos em que não sabes o que te pode suceder. Temos a coragem como nosso pão quotidiano - e assim tem sido sempre para nós portugueses - mas, diante de uma tamanha e numerosa gente nova, num ambiente completamente diferente do teu, pisando uma terra desconhecida e afrontando olhos que te penetram fundo, não podes ignorar o temor. Sabemos porque viemos e por isso sabemos que não sempre seremos bem recebidos. Então dentro de nós, nesses momentos de supremas revelações, acorrem todas as emoções de que o homem é capaz.

Os dois mancebos que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem as armas: e assim eles fizeram, porém sem afastarem-se muito. Mal tinham pousado por terra as armas, e os dois mancebos logo desciam dos batéis para a praia, e com eles o espantado Afonso Ribeiro.

Os dois mancebos logo correram por entre a multidão dos seus, alegres e festosos, sem parar até passar um rio que por ali corre. É um lindo rio de muitas e boas águas doces, dando até o joelho de quem o passa. Correndo atrás dos dois, outros atravessaram o rio. Enquanto isso acontecia, Afonso Ribeiro descia à terra caminhando lentamente e a medo. O degredado se encontrava assim na praia diante de tantos desconhecidos quando do meio deles saiu um homem já maduro que o recolheu e amoravelmente o conduziu até o grupo. Porém, logo depois o trouxeram de volta, vindo com os dois que antes estiveram conosco. Naquele momento, minha querida Maria, dentro de mim eu me perguntei quais devem ter sido os sentimentos vividos por Afonso Ribeiro naqueles insólitos eventos.

Então, amada filha, começou uma grande festa. Uma surpreendente festa que me encheu de comovente tremor. Logo chegaram muitos daqueles homens. Entravam pela beira do mar para os batéis, até quanto podiam. Traziam cabaços de água e os carregavam até os nossos barcos. Perto dos batéis, eles lançavam os barris que nós

pegávamos. E pediam que lhes dessem alguma coisa por isso. Nicolau Coelho estava carregado de quinquilharias. E eles se alegravam ingenuamente com tão pobres regalos. Por qualquer coisa trocavam arcos e setas, e no entusiasmo que demonstravam então muito se pareciam com os dois mancebos que conosco estiveram a bordo e que a partir deste momento não mais vimos.

Gostaria muito, minha querida Maria, de dizer-te com clareza como eles são. Agora eu os vejo. Não me canso de admirá-los e gostaria muito de dizer-te tudo sobre eles. O que logo me surpreende neles é o prazer pelos enfeites. Vê-se que gostam de adornar-se, de enfeitar-se, de dar-se uma figura bela e sempre renovada. A maioria deles - e agora eu os fito fixamente para ti, Maria - grande parte deles traz aqueles bicos de osso nos lábios. Alguns dentre eles são desprovidos, mas então trazem os lábios furados e nos buracos um como bocal de pau. Outros traziam três daqueles bicos, um no meio e os outros nos lados da boca. Muitos outros ali vão quartejados de cores vivas, isto é, metade de tintura preta, como azuladas, e metade com a cor natural da pele. Outros, mais refinados, ali vão quartejados em forma de xadrez. Assim são os homens, minha querida Maria, mas igualmente em meio a eles posso ver para ti algumas moças. Ali estão entre eles três ou quatro delas, muito novas e muito gentis, com belos cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas. Ali estão elas e vão nuas como os homens. Te digo, minha querida filha, que as olho e não me envergonho disso. Elas ali vão nuas, gentis e naturais. Belas nos seus movimentos, no caminhar e nos gestos. Mostram-se inteiras e também as suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras. E de tanto bem olhá-las não sinto vergonha alguma.

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