Carlos Leça da Veiga
Quem quis garantir os seus propósitos alienígenas?
As movimentações populares consequentes ao 25 de Abril, tinham conseguido ensaiar algumas relações sociais de produção dalgum modo mostradas promissoras e, em sua consequência, conquistas sociais mais que satisfatórias. Faltou-lhes conseguirem impor no texto fundamental da República a necessária garantia constitucional para assegurarem a sua instalação definitiva. Essa impossibilidade resultou, tão-somente, da debilidade política, da insensibilidade social e, não menos importante, dos compromissos alienígenos inaceitáveis, contudo, infelicidade nossa, sempre presentes na generalidade das chefias dos partidos políticos que domesticavam os Constituintes. Foi pelo conjunto de todos esses desatinos verdadeiramente antidemocráticos que acabou transfigurada, fatal e definitivamente, a tão desejada Constituição de Abril.
Na realidade, todas essas iniquidades só devem e só podem atribuir-se à responsabilidade – irresponsabilidade – dos Constituintes. A falha da garantia constitucional necessária para a instalação definitiva dos direitos promocionais terá sido intencional, venal ou, tão-somente uma consequência da incompetência, ignorância e incapacidade dos constituintes? Importa perguntar-se embora, de antemão, a resposta seja conhecida.
Na verdade, o discurso oficial dos vários partidos presentes na Constituinte, em principal dos de maior dimensão foi, desde logo, apresentado para garantir, quanto possível – só não viu quem não quis – os seus melhores propósitos estratégicos, os alienígenos desde logo, tanto aqueles de então como, também, aqueleoutros previstos para executar mais tarde. Apesar dos variados disfarces ensaiados, mesmo assim, não conseguiram evitar o transparecer das suas manifestações de obediência às vozes que do exterior, Leste e Oeste, tudo dispunham. “O nosso escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro – aceites não porque sejam boas, mas porque são francesas ou italianas, ou russas, ou o que quer que seja”, uma passagem, in «Fama», de Fernando Pessoa, escrita há pouco mais de setenta anos e mais outra adivinhação que acertou no alvo.
A verdade manda dizer que por força da debilidade da letra constitucional – letra que o tempo revelou só ser conveniente para os possidentes – ano após ano, de revisão em revisão, de mentira em mentira, de desgovernação em desgovernação, haveria de chegar-se à prática discricionária, cada vez mais em curso que, como pode observar-se com toda a claridade, é levada a cabo ao sabor dos interesses económicos dos grandes detentores do capital, tanto os de cá como, também, sobretudo, note-se bem, daqueles de fora.
Fez-se um Constituição com a preocupação única de dar-lhe semelhança com quanto é praticado em vários estados europeus e nunca no respeito dos acontecimentos internos e externos, predisponentes e consequentes ao 25 de Abril, tudo como se a História de Portugal não tivesse tido as suas vicissitudes muito próprias, quantas delas notabilíssimas, quantas outras nada recomendáveis, contudo, elas mesmas, pelo seu conjunto, geradoras de atributos culturais e comportamentais nacionais, os mais variados, cujo ignorar pelos Constituintes desfeiteou, com muito peso, o curso dos acontecimentos políticos, culturais e sociais tal como estavam a ser apontados pelas movimentações da população portuguesa.
A Assembleia Constituinte, por incompreensão, ou por intencionalidade flagrante, avançou nos seus trabalhos com a abdicação inaceitável duma avaliação séria e muito necessária do percurso histórico português cujo modo particular de estar no mundo, fosse porque fosse, sempre apresentou uma assinalável singularidade e que, depois do 25 de Abril e da Descolonização, exibia uma grande originalidade, uma audácia indesmentível e um imenso vigor político que foi sentido, como foi, em toda a sua extensão, pujança e contradições, tanto no plano da vida interna do país como também – um ineditismo histórico dos últimos séculos – na cena internacional, em cuja, as suas repercussões foram sentidas com largueza e profundidade dignas de nota elevada. Apesar disso e contra isso, na racionalidade fria, calculista ou ignara dos Constituintes só houve lugar para uma aceitação evidente e desprimorosa, tanto dos valores como das práticas políticas alienígenas.
O passado histórico de Portugal, fosse o antigo, fosse o mais recente, muito em particular aquele posterior à Descolonização, foram, qualquer deles, tão-somente, um artefacto muito invocado no formalismo do discurso parlamentar.
Na verdade, esse discursar, haveria de condicionar e direccionar a Constituição política portuguesa e, assim – como acabou por verificar-se – teve influência significativa na definição dum estatuto político fundamental que, por infelicidade e de facto, não foi conducente à afirmação duma ordem sócio-política verdadeiramente democrática. Desta maneira, as consequências mais importantes da estratégia do 25 de Abril – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver – foram mandadas emoldurar de formas diversas e ao sabor das idiossincrasias duns tantos apostados e postos ao serviço de ideologias que não só já estavam imensamente descaracterizada ou pervertidas como, também, na verdade, já só serviam para disfarçar, mas mal, os interesses do exterior que, entre nós, dum e doutro lado, de Oeste e de Leste, tudo comandavam na busca de mais uma achega para a conquista da supremacia mundial.
Temos uma Constituição com muitas regras de direito mas que, como pode comprovar-se, não impedem a continuação da injustiça social. Agora, no século XXI, toda qualquer ordenação jurídica fundamental que não garanta, com carácter vinculativo, querer destronar, em definitivo, as assimetrias sócio-económicas e as prepotências ideológicas será tudo que possa querer-se menos uma intenção constitucional com verdade democrática.
quinta-feira, 10 de junho de 2010
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