quarta-feira, 16 de junho de 2010

Outra Constituição, outra Democracia, uma Terceira República – 30

Carlos Leça da Veiga

A Constituição parece estabelecer uma certa animosidade com os Cidadãos.

A rua, o sentir popular, afinal, o autor dos passos mais proeminentes da História nacional, esse, na vontade dos maiorais, em definitivo, tinha que ser proscrito. Como assim, a Constituição, fruto dos ardis daqueles partidos políticos, soube consagrar todos os mecanismos constitucionais mais precisos para que, em última análise, paulatinamente, sempre que necessário para os mais poderosos, ano após ano, fosse permitido conseguir acabar por garantir-se a supremacia ideológica do neoliberalismo e do seu capitalismo multinacional, por eufemismo, apelidado de economia de mercado, mercado do qual, para não terem de sentir adversidades dignas de nota, insistem em excluir o imprescindível capital público das actividades com possibilidades lucrativas. Para que, a prazo breve, nada viesse a poder beliscar os interesses dos possidentes do sector privado – a Constituição é frágil e permissiva – destruiu-se o sector público da economia nacional portuguesa cuja presença nos jogos do mercado – uma situação legitima, muito desejável, imensamente recomendável e não menos necessária – por força da concorrência haveria de poder beneficiar os orçamentos da massa populacional anónima e socialmente mais desprotegida. A Constituição actual ao permitir a destruição do sector produtivo público retira aos socialmente mais débeis a possibilidade de estarem em posição de conseguir fazer frente e dar sombra a muitos privados ou, pelo menos, a moderar-lhes as ambições mais especulativas. O funcionamento do sector produtivo público, com a oferta, menos dispendiosa, dum número considerável de bens, quantos de primeira necessidade, haveria de impedir, pelo menos, o avolumar desmesurado de mais valias, para mais, em favor absoluto dos privados envolvidos.

Como pode verificar-se o articulado constitucional português parece estabelecer uma relação de inimizade com os interesses e valores sociais da maioria do Povo português. Na verdade, do lado dos possidentes – uma minoria face ao todo populacional nacional – as queixas ouvidas só vão no sentido de pedir uma revisão da Constituição que permita possibilitar-lhes alcançarem mais facilidades – ainda mais – para a actuação do seu capitalismo que, santa hipocrisia, aparece designado pelo que chamam «empreendorismo» tudo a par de agitarem a reclamação constante duma protecção especial para as suas exigências económico-financeiras que aparecem defendidas pela balela do aumento da competitividade, porém, a ser isso, apenas, daquela que mais lhes convêm.

A educação, cultura e ciência, no texto constitucional nacional, aparecem contempladas no Artigo 73º, que, de imediato, no seu número 1 estipula que todos têm o direito à educação e à cultura. Não se compreende a não indicação desse mesmo direito para a ciência salvo se os Constituintes (não é para admirar) ignoravam os benefícios que ela pode conceder, directa ou indirectamente, até ao mais dos iletrados. Mas aquilo que naquele artigo constitucional, o número 73, é considerado, com tanta magnanimidade, como um direito fundamental não vê, depois, no mesmo texto, uma só palavra sobre a sua realização objectiva, ou seja, uma palavra que constitua um compromisso seguro, definitivo e inequívoco para com a população portuguesa e, como tal, uma sua legítima arma de arremesso, para utilizar quando sinta ter sido desfeiteada. Não há uma simples palavra que possa tranquilizar os portugueses quanto ao seu acesso autêntico àquele direito. O artigo atrás referido contenta-se em falar de promoção, democratização da educação e da cultura e de incentivar e apoiar a criação e a investigação científicas cujas condições e fruições, mau grado nada que as garanta e sustente, em compensação, de sobejo, são anunciadas. Na Constituição assegura-se que o ensino básico é universal, obrigatório e gratuito – grande a generosidade dos constituintes – porém, os demais graus do ensino, cujas várias insuficiências nacionais são gritantes, têm a promessa duma gratuitidade progressiva que a experiência, à saciedade, não tem vindo a demonstrar. Medidas avulsas são meros oportunismos políticos!
Uma Constituição que faz promessas! Dá para rir.

No caso do direito ao trabalho incumbe ao Estado promovê-lo (Artigo 58º) mas a Constituição não diz como pode dar-se uma garantia efectiva, eficaz, eficiente e segura dessa promoção o que, como parece lógico, assim deveria fazer. Pode prescindir-se dessa garantia? Por tratar-se dum direito constitucional tinha de estar assegurado indiscutivelmente e, também – isso não deverá esquecer-se – por ser um direito e um dever tanto individual como social com repercussões tremendas na vida da sociedade então, por razão duma boa ética, tinha de impor-se toda a cautela na impossibilidade de poder haver um seu não cumprimento. Repare-se na incongruência de falar-se duma promoção do trabalho e não, sobretudo, da sua garantia o que, na leitura mais que legítima de qualquer cidadão, pode querer dizer que o Estado português, uma vez realizada a obrigatoriedade da sua campanha promocional em favor do emprego, pode permitir-se – parece que sim – quedar-se numa indiferença olímpica pelo desemprego. Na circunstância infelicíssima deste acontecer, como é o caso em curso – já atinge mais de 10% da população activa – resta esperar-se que a governação, com a magnanimidade típica das suas costumados promessas, nada mais tenha que fazer que não seja reiniciar, com grandes parangonas, o ciclo da promoção e, apenas, da promoção.

A segurança social é mais outro direito previsto (Artigo 63º) contudo, ao Estado, incumbe, apenas, organizar, coordenar e subsidiar um sistema, isto é, fornecer-lhe um orçamento que discrimine as receitas e cubra as despesas (Artigo 105º) contudo, antes doutra coisa mais, é um direito que aparece sujeito a uma lei de enquadramento cujas condicionantes são tais que nada garante que um direito constitucional não acabe na prática como mera acção de caridade pública feita conforme a vontade duma qualquer maioria parlamentar.

A saúde que nos dizem ser um direito de todos (Artigo 64º) é anunciada no texto constitucional como sendo tendencialmente gratuita o que, numa analogia hipotética, pode deixar adivinhar-se que, face a uma crise orçamental deficitária, uma disposição idêntica possa tomar-se para o sufrágio universal e o voto passe a ter um preço, porém, tendencialmente gratuito. De facto os actos eleitorais, cuja necessidade é indiscutível, têm custos elevadíssimos donde, na lógica dos tasqueiros que dirigem o País – obcecados, como aparentam, pelo défice orçamental que, a prazos médio e longo só sabem fazer aumentar – deveriam, também, ter um custo financeiro, tendencialmente gratuito e suportado à boca das urnas por cada eleitor. Assim acontece – mas mal – a quem, por desdita, tem de socorrer-se dum hospital.

A habitação (Artigo 65º) é um direito de todos mas para assegurá-lo o Estado nada garante e, apenas, programa, promove, estimula, incentiva e apoia além de reservar-se a adopção duma política tendente a estabelecer um sistema de rendas compatível, o que só pode querer dizer que essa disposição não passa doutra coisa mais que mais uma outra das fantasiosas tendências constitucionais portuguesas.

Para quê, então, inscrever-se como um direito algo que, desde logo, nunca terá qualquer efectivação plenamente significativa? A partir de qual idade, um qualquer português, pode reclamar a efectivação do seu anunciado direito à habitação?

Para quê, num texto de tanta responsabilidade e cuja respeitabilidade terá de estar acima de qualquer suspeita inclusive de qualquer motivo de troça, para quê, introduzirem-se especulações políticas que, em absoluto, são de mero oportunismo?

Se não têm, ou não têm interesse em ter, a capacidade bastante para garantir a exequibilidade do articulado constitucional para quê, então, darem-lhe uma visibilidade tão enganosa?

A população tem de exigir a garantia efectiva de todos os direitos enunciados na Constituição e exigir que essa mesma garantia – parece pouco ortodoxo mas faz falta – figure no próprio texto constitucional mas sem ser, com a tal letra muito pequenina, como é habitual nos contratos comerciais que, de facto, quase sempre, só o são para vantagem duma das partes.

No caso do ambiente e da qualidade de vida, a Constituição proclama que esse direito promocional é facultado a todos mas que, repare-se (nº.2 do Artigo 66º), é assegurado no quadro de um desenvolvimento sustentável, logo sujeito a uma condicionante muitíssimo complexa, muito poderosa e, por completo, intransponível pela vontade própria da generalidade dos portugueses. Ao invés, como é proclamado constantemente pelos gurus do capital privado, tem de depender da evolução, positiva ou negativa, da “economia de mercado”.

Se os direitos à saúde e à habitação estão sujeitos a tendências variadas quando ao valor que os portugueses terão de pagar para deles poderem ter usufruto, no caso do ambiente exige-se mais. Exige-se um desenvolvimento sustentável – um preço exorbitante – que a Constituição não indica quem, efectivamente, pode garanti-lo, nem como pode ser garantido e não parece pensável que a situação económica, fruto do actual mercado selvagem e da dependência do exterior, consiga vir a fazê-lo.

Mais outra vez deverá tomar-se em atenção o que escreveu o professor universitário norte-americano John Rawlls «Assim, um sistema económico não é apenas um dispositivo institucional para satisfazer necessidades existentes sendo, também, uma forma de criar e modelar necessidades do futuro» e, noutra passagem da «Uma Teoria da Justiça», de 1971, pode ler-se algo que vem muito a propósito quando, como agora, a Constituição da nossa República é acusada – e muito bem – de não dar garantias efectivas aos direitos sociais. «Daqui decorre que o fornecimento dos bens públicos e o respectivo financiamento devem ser assegurados pelo estado e torna-se necessário a aplicação duma regra imperativa que obrigue ao pagamento». Não foi por acaso que John Rawlls foi considerado o maior políticologo do século XX donde, os nossos Constituintes, estes, ter-se-ão de considerar situados no pólo oposto.

1 comentário:

  1. É fácil estar de acordo, é mais dificil implementar e sustentar. Realisticamente, defender com unhas e dentes a Segurança Social,o SNS e a Educação .E defende-las como? vão ser as próximas batalhas.

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