segunda-feira, 26 de julho de 2010

Gualdino Gomes – uma figura que merece ser lembrada


À porta da Havaneza de Lisboa em 1938, da esquerda para a direita Abel Manta, Aquilino Ribeiro, Gualdino Gomes e Júlio da Costa Pinto
 Sócrates, o filósofo grego, viveu entre 470 e399 a.C. Diz-se que era filho de uma parteira e de um escultor e marcou para sempre a história da filosofia. Nada deixando escrito, apenas o conhecemos através das difamações de Aristófanes, da imagem redutora que dele traçou Xenofonte e dos elogios de Platão, os quais lhe conferem uma dimensão que doutra forma não teria. Há vultos que assumem grande importância e influência enquanto estão vivos e, se ninguém os recordar, desaparecem ao morrer, pois nem todos têm a sorte de ter um Platão como amigo. Há também o fenómeno inverso, como o de Fernando Pessoa, que só começou a «viver» cerca de vinte anos após a sua morte. Vou falar sobre um homem que não tem o nome em qualquer rua e não figura  nas enciclopédias - uma figura da cultura do ultimo quartel do século XIX e primeira metade do XX, que a maioria das pessoas desconhece completamante – Gualdino Gomes.
«Sou um leitor, não sou um escritor», dizia aos que o acusavam de não ter obra publicada. Porém, mais do que um leitor, Gualdino foi um censor ético e estético, um critico severo e atento, cujas diatribes eram temidas. Os seus conselhos foram acatados por escritores de sucessivas gerações. Vagas de literatos e de artistas que pelos seus olhos foram passando, aguardavam, apreeensivos, o juízo que, da sua cadeira de café, Gualdino iria emitir. Durante  décadas manteve convívio com notáveis homens de letras e artistas. Foi amigo de Oliveira Martins, de D. João da Câmara, de Teixeira-Gomes, de Marcelino Mesquita, de Raul Proença, seu director na Biblioteca Nacional. E foi íntimo amigo (e inimigo de estimação) de Fialho de Almeida. Óscar Lopes, na História da Literatura Portuguesa, afirmou que Fialho foi um émulo de Gualdino no seu «pontificado de café». A relação entre Gualdino e Fialho nem sempre decorreu de forma pacífica.

Raul Brandão nas Memórias foi cáustico para a fauna que escolhia os cafés como habitat: «É na Brasileira e no café Chiado que os pobres-diabos, como rãs num charco de café, se exaltam ou combinam as revoluções do dia seguinte. A um canto, o Gualdino de gabinardo e barba branca, prepara a última piada...» Na realidade, o nome de Gualdino Gomes é quase indissociável dos lugares que, durante mais de sete dezenas de anos, foii ocupando às mesas dos cafés da Baixa lisboeta. Como recorda José Gomes-Ferreira, há «alvos predilectos (…) das setas envenenadas de muitos arcos» que a fauna dos cafés desfere. Júlio Dantas é um deles (- Júlio Dantas é o discípulo do chinó do Garrett! dirá Gualdino Gomes «mestre dos mestres dos conversadores de café»).

Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão, o político e jornalista, numa evocação organizada pelos Amigos de Lisboa em 26 de Dezembro de 1936, recordou a tertúlia do Martinho: «o que caracterizou esta casa era o grupo literário que todas as noites realizava as suas sessões de cavaqueira irreverente, em torno das chávenas de café e do pontífice que era o incomparável Fialho de Almeida. Desse grupo faziam parte Marcelino Mesquita, Manuel Silva Gaio, D. João da Câmara, Gualdino Gomes, Heliodoro Salgado, João e Levy Marques da Costa, João Chagas, o espirituoso Figueiredo (Pinturas), Eugénio de Castro, Abel Botelho [...] Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro também apareciam de longe a longe.»

O escritor Fernando Correia da Silva, no romance Querença, conta dois episódios ocorridos em 1947 ou 1948, pouco antes da morte de Gualdino. O Fernando era na altura um muito jovem estudante e fazia parte de um grupo que, no Café Chiado, onde Gualdino Gomes, já muito idoso, era figura destacada: «- O Gualdino é um sobrevievente solitário. É mantido por filhos ou netos de amigos seus já falecidos. Magro e comprido, barbicha branca, à duque de Guise. Roupinha no fio, mas sempre distinto e distante, aristocrata por defesa e temperamento. Diz ele para o criado de mesa que anda sempre a bufar: «Ó Pina, traga-me uma bica e um queque, mas que seja fresquinho.» «Ó Sr. Gualdino, os queques acabaram de chegar...» «Também eu acabei de chegar e já tenho 90 anos...» Segunda história: «Um dia, um preto... Esqueci-me do seu nome. É angolano e jornalista. Anda sempre a louvar o génio universalista dos portugueses, pois o Infante, assim e assado, o Vasco da Gama e Albuquerque... (...) Pois um dia o preto, no Café Chiado, decide humilhar o velho. Não suporta a sua ironia, isso é coisa do reviralho e merece correctivo. Intercepta o Gualdino, aponta-lhe a gola do sobretudo, grita, apregoa para que todos ouçam: «Ó Gualdino, você tem aqui um piolho...» O Gualdino mira o piolho, real ou fictício, para o caso tanto faz. Com um piparote do dedo médio logo o dispara sobre o preto: «Ah malandro, vais já desterrado para a costa de África!»

Gualdino foi assíduo frequentador dos galinheiros dos teatros de Lisboa. Os galinheiros eram os lugares mais baratos, com assentos incómodos, situados no topo das salas e, portanto, mais distantes do palco, com má visibilidade e deficiente acústica. Ao galinheiro deu-se também o nome de geral. António de Sousa Bastos, marido de Palmira Bastos, escreveu: «Apesar de ter aparecido apenas uma única vez no teatro, como colaborador de Marcelino Mesquita na revista A Tourada, que se representou no Teatro Avenida, [Gualdino Gomes] é bastante conhecido no meio teatral por ser um dos mais salientes manifestantes contra grande número de originais que se representam no Teatro Normal [D. Maria II]. No café Martinho, à porta do Mónaco, no galinheiro do D. Maria, é sempre ele o chefe das verrinas.»  Voltemos a Raul Brandão e às suas Memórias: «Pertenceu à malta que ia com Fialho para o galinheiro dos teatros deitar as peças abaixo - pertenceu à malta esplêndida que se levantou como um só homem e gritou - Às armas! - quando, no palco, um actor vestido de porteiro anunciou aos outros a entrada do senhor general - metendo para sempre no fundo apeça, o autor e os comediantes.»

Da sua mesa de café, Gualdino assistiu à passagem de grandes e pequenos vultos, de diversas gerações e  correntes literárias. À chegada de uns e à partida de outros, como numa estação de caminho-de-ferro. Viu desaparecer grandes nomes da literatura e da cultura: Alexandre Herculano, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Oliveira Martins, Gomes Leal, João de Deus, Eça de Queirós, Tomás Ribeiro, António Nobre, Gervásio Lobato, D. João da Câmara, Fialho de Almeida, Bulhão Pato, Mário de Sá-Carneiro, Marcelino Mesquita, Gomes Leal, Maria Amália Vaz de Carvalho, Teófilo Braga, Augusto Gil, Wenceslau de Morais, Florbela Espanca, Raul Brandão, Henrique Lopes de Mendonça, Fernando Pessoa, Leonardo Coimbra...

Na sua juventude, relacionou-se com alguns dos próceres da  Geração de 70. Viu chegar os realistas e os parnasianos, os neo-românticos e os simbolistas, a gente do Orpheu, os futuristas, os presencistas, os seareiros (foi um deles), os neo-realistas, os surrealistas... Durante a sua vida assistiu à abertura da Avenida da Liberdade, às  comemorações camonianas que constituram como que  um importante marco, na luta pelo derrube da Monarquia, ao apaixonado debate da Questão Coimbrã, ao evoluir das obras de Eça de Queirós, de Antero de Quental, de Sampaio Bruno, de Teófilo Braga, de Ramalho Ortigão, de Oliveira Martins, de Fialho de Almeida, à criação do Grupo do Leão, imortalizado por Columbano, ao Regicídio, à proclamação da República, à eclosão da Grande Guerra, à Revolução de Outubro, ao sidonismo, ao advento do fascismo e do nazismo, ao 28 de Maio, à instauração do corporativismo salazarista, à Guerra Civil de Espanha, à Segunda Guerra Mundial... A política não era território em que lhe interessasse internar-se. No entanto, não aprovava o regime autoritário que, desde 1926, vinha, com as mutações necessárias à sua sobrevivência, a dominar a vida social, política e cultural do País.

Sobre a relação de Gualdino com Fialho, disse Raul Brandão que «com apenas dois ou três folhetos [foram quatro!] e um soneto no bolso» - pois esta é toda a sua bagagem literária - sempre se mói com alguma inveja quando vê outros escreverem mais um folheto do que ele conseguira produzir.» (...)«Passou a vida a inventar pormenores do Fialho, vingando-se, como ele próprio confessa, da maneira como o grande escritor tratou aquele soneto que começava assim: Nas soirées do Gervázio/De olho matreiro e gázio... - Por causa dele deixei de escrever! Escarneceu a minha obra!» Sobre a biblioteca de Fialho, disse Gualdino: «Eu chamo a estes livros as onze mil virgens. São apenas quatro mil volumes, ou pouco mais, mas - vai surprendê-lo esta minúcia - estão aqui todos por abrir. Há aqui Balzac e Zola, Eça e Ibañez, os Goncourt e Ponson du Terrail. Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta literatura de costureiras e guarda-portões era para as grandes hora amarguradas.» Conta também que, pretensioso e janota, Fialho «ostentava uma grande corrente de ouro e uma esmeralda de brasileiro na gravata. Num dia de tourada, apareceu no Martinho, com uma camisa vermelha que teve de tirar pela troça que lhe fizeram: - Julgo que nunca, nem com a própria mulher, teve relações senão de amizade. Os seus quartos de dormir eram separados, um em cada extremidade da casa, e pela manhã, quando ela lhe batia à porta, ele dizia sempre: - Espere, menina, que eu ainda não estou vestido.»

Do lado de Fialho as referências a Gualdino foram escassas. Em Os Gatos, referindo-se a um atentado falhado contra o imperador D. Pedro II do Brasil e dissertando sobre a imperiosa falta que ao currículo dos monarcas que se prezem faz um regicídio, mesmo que falhado, diz - «Oh meu senhor, habilite-se! Uma reles bomba que seja.» (estava-se em 1889, a 21 anos de distância de um regicídio bem sucedido...). Neste contexto, e propósito de uma alfinetada literária a D. Luís, dizendo que ele traduziu tão mal Shakespeare «que esfriou entre nós o fetichismo pelas obras-primas estrangeiras - subtil maneira esta de V.M. reconduzir o gosto à exclusiva adoração das nacionais!», continua assim a diatribe. «Era trabalho onde o meu rei despejaria a contento geral as asneiras que lhe tivessem sobrado dos seus outros trabalhos literários, e que podia sugerir talvez ao Sr. Gualdino Gomes, por via do rancor plumitivo, o tirázio que V. M. jamais pechinchará do Sr. Consiglieri Pedroso, mercê do jacobino.» Referia-se aqui Fialho ao professor universitário, ensaísta positivista e militante republicano, Zófimo Consigieri Pedroso, famoso pela acutilância dos seus folhetos doutrinários. Fialho de Almeida colocava Gualdino no topo da agressividade verbal, comparando as suas verrinosas piadas a um tirázio regicida.

Por volta de 1913 ou 1914, espalhou-se um dia pelos cafés da Baixa de Lisboa a notícia da morte de Gualdino Gomes. Quem conta é Raul Brandão: «o Ratola, velho companheiro na Biblioteca, se apressou a cumprir o seu dever de amigo, de camarada e de poeta. O Ratola é um funambulesco, balouçando-se dentro de uma sobrecasaca empertigada, luneta de tartaruga e ar de quem cumpre sempre uma missão importante - até quando vai à retrete. Subiu as escadas do prédio onde morava o morto (tinha lido o número da casa no Diário de Notícias), relembrando algumas frases de efeito... Abriu-se a porta do quarto onde o morto, coberto com um lençol, deitava já um cheiro adocicado - a cadáver e a aguardente. Duas mulheres, de preto, choravam ou rezavam. Ratola compenetrou-se, assoou-se com solenidade e disse para a que supunha ser a viúva: - Minha senhora: os meus sentido pêsames... Ele foi o que se chama um grande boémio - mas muito bom rapaz. O vulto de preto ergueu-se, protestando com dignidade ofendida: - Meu marido, senhor, nunca foi um boémio! Meu marido foi um modelo dos esposos e dos retroseiros! Mas o Ratola, que se sentia também magoado no seu valor e no seu conhecimento da vida, obtemperou: - Ora essa, minha senhora! Eu conheci muito bem seu marido e fui companheiro dalgumas borgas literárias... Um boémio! - Oh, meu Deus! Meu marido um boémio!... E, um a teimar que sim, a outra a protestar que não, estiveram quase a pegar-se diante do cadáver - até que empurraram o Ratola pela porta fora. - Eu conheci-o! O Ratola não conhecera aquele... Houvera engano. Quem morrera fora outro Gualdino Gomes, brasileiro», pois o nosso Gualdino, estava a essa hora na Biblioteca Nacional a encher verbetes, com o olho do Raul Proença em cima. Não abundam, infelizmente, as fontes escritas sobre este homem que pouco escreveu e muito falou. Por isso, colhemos as migalhas de informação que fomos colhendo ou que, de uma forma ou de outra, nos chegaram. Por exemplo, Raul Proença agradeceu, no prefácio do primeiro volume do seu monumental Guia de Portugal, a assistência «paciente e crítica» de Gualdino na gestação daquela sua obra. Porém, o texto mais eloquente sobre a personalidade de Gualdino Gomes é, quanto a mim, a dedicatória do grande Aquilino Ribeiro, no seu livro Estrada de Santiago, palavras que transcrevemos na íntegra:

«Com a devida vénia de quem o sabe avesso à publicidade, peço licença para lhe dedicar este livro que leva um nome pomposo da arquitectura celeste e não passa de um nicho das almas, desses nichos de singela e cândida fábrica que velam à beira dos caminhos. No ofício das letras, tão mofino e miserando em Portugal, que ou a pena se parte, se acanalha, a guia fadário ou o Espírito Santo, a sua sombra, Sr. Gualdino Gomes, é, se volvo os olhos à retaguarda, uma das que encontro sobre os meus passos aprazível e tutelar. Vejo-o lá longe, no meu começo, apadrinhando o Jardim das Tormentas com a astúcia e a bondade discreta dum filósofo de Eleia. V. , que conhece todos os livros e ninguém vê com um livro, metera-o no bolso do jaquetão e dias a fio subiu e desceu o Chiado, à espreita a imagem verde, flamante, que lhe alegra a capa. Por este meio singular e outros, alvoroçou a curiosidade dos que o conhecem - ia dizer chamou a atenção da confraria literária em que capricha manter-se irmão leigo. Quando em Paris fui informado, enterneci-me. E, eu lhe digo, nessa circunstância, o impenitente perdulário do espírito, o amável zombador, que em si deslumbram, ofuscaram-se ante o homem de ânimo benigno, talhado dir-se-ia sobre um padrão de Anatole, se espontaneamente, visceralmente não fora essa a sua índole, muita sua por obra e graça só de Deus.
Certo e ser V. como Sócrates, por Platão comparado aos Silenos que se viam expostos nas oficinas dos escultores, com uma gaitinha nos dedos. Ao abrir as duas partes de que se compunham, apareciam estátuas de divindades. Como ele, herdou de Mársias a veia faceciosa. O sátiro tangia frauta; a Gualdino basta a palavra para fascinar quem o ouve. Como ele, tem horror à escrita e joga ao vento, com um desapego soberano, o oiro de suas vozes e pensamentos e até o veneno subtil dos seus juízos. Como ele, ainda, é o catequista dos incipientes.
Por todos estes argumentos que brotam do cérebro ou sobem do coração , eu lhe devia a fruste oferta deste livro. Muitas vezes, à janela, nas noites de lua baça, quando a Terra, em redondo, parece a boca dum cesto enorme, suspenso ao firmamento pelo aro luminoso da Via Láctea, em que tudo soçobra, homens, coisas e loisas, metia a mão no seio a procurar. Achava espinhos, remorsos, uma ou outra flor imarcessível, e a gente que aí vai, alguma celestial e sobre-humana, da muita que eu via andando, andando Estrada de Santiago fora. Digne-se, Sr. Gualdino Gomes, a ceitar a pobre homenagem, e, de meus ousios em escalar o céu, a Deus prestarei contas mais confiado.»

Gualdino Gomes é por muitos considerado um «escritor menor» e deste modo displicente atirado para as catacumbas do esquecimento. Vimos já que ele próprio se considera um «não-escritor.» Como bem diz Raul Brandão, «a sua mocidade irrespeitosa prolongou-se até aos cabelos brancos» e sempre preferiu arranjar mais um inimigo a perder a oportunidade de desferir uma das suas estocadas de ironia ácida. José-Augusto França define-o como uma «curiosa figura de erudito e de «blagueur» do Chiado.» Como podemos ver pelo testemunho de Correia da Silva e pelas palavras de Aquilino Ribeiro, a despeito da sua persistência na crítica mordaz, soube conviver com os mais jovens e ajudá-los sempre que lhes reconhecia valor e mérito. Um dos testemunhos orais que nos chegaram, foi o de Manuel da Fonseca, um dos jovens que teve o privilégio de o conhecer, e que afirmou ser Gualdino «um conversador fascinante.» E Manuel da Fonseca, além de extraordinário escritor, foi também um emérito conversador e contador de histórias. Não esqueçamos o testemunho de Beatriz Costa que, num livro autobiográfico disse só ter aprendido a ler aos 13 anos de idade e sozinha e que iniciou a sua alfabetização à mesa da Brasileira, rodeada por homens como Almada Negreiros, Gualdino Gomes, Aquilino Ribeiro e Vitorino Nemésio.

Balas de Papel foi o título de quatro opúsculos panfletários que nos legou, projecto de uma revista bimensal que durou dois meses, entre Novembro de 1891 e Janeiro 1892. Tratava-se de uma publicação de sátira política, social e cultural, cuja inspiração pode ser encontrada nos textos das Farpas e de Os Gatos, embora as diatribes não possuíssem a mesma riqueza formal dos modelos. No primeiro número, salienta-se a dedicatória a Fialho: «Ao Fialho de Almeida/Preito de vassalagem ao maior de todos os escritores portugueses/Saudação vibrante de entusiasmo ao escarnecedor justiceiro e temível dos Gatos.» Como sabemos, uma ironia de Fialho sobre um soneto seu ter-lhe-ã bloqueado a veia criadora. Pelo menos, essa é a desculpa que dá ao longo dos quase sessenta anos que se seguiram para quase nada ter publicado, pois além desses pequenos folhetos, escreve ao todo pouco mais de uma dúzia de artigos, dispersos por revistas e jornais. Publica também um soneto na Seara Nova, para além desse tal outro que, ridicularizado por Fialho, é, segundo Gualdino a causa próxima da ruína da sua carreira. É talvez muito pouco para justificar uma vida que se prolongou por mais de 90 anos e em que pelos menos 70 foram votados à literatura. Porém, não esqueçamos, Gualdino Gomes é sobretudo um leitor, a sua função é ler e dar a sua opinião, nem sempre caridosa, mas sempre honesta e desassombrada. As «balas de papel» que disparou não foram muitas, mas aquelas que fez de palavras proferidas nas mesas do Café Chiado, da Brasileira, ou do Martinho, tiveram preponderante influência em sucessivas gerações de gente das letras. Algumas perduram até aos nossos dias. E, se pensarmos bem, isso já não é pouco.

Eis a ficha biográfica que as enciclopédias não trazem:

Gualdino Gomes nasceu em Lisboa, em 19 de Abril de 1857. Nesta cidade passou a infância e fez os seus estudos, licenciando-se em Letras (Curso Superior de Letras). Durante a juventude viveu algum tempo no Brasil, no Estado do Pará, regressando depois a Portugal onde foi admitido como bibliotecário na Biblioteca Nacional. Em 30 de Novembro de 1891, lançou, com Carlos Sertório, a publicação Balas de Papel, da qual saiíam quatro números. Em 1 de Fevereiro de 1894, subiu à cena no Teatro Avenida de Lisboa a revista A Tourada que Gualdino Gomes escreveu de parceria com o conceituado dramaturgo Marcelino Mesquita. Fez parte do «Grupo da Biblioteca» que, liderado por Raul Proença, esteve na base de muito do que, na época, aconteceu na vida cultural do País, incluindo a criação da revista Seara Nova (lançada em Outubro de 1921). Desse grupo faziam parte, além de Gualdino, Jaime Cortesão, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Afonso Lopes Vieira, Reinaldo dos Santos, José de Figueiredo, Raul Lino, Luciano Pereira da Silva. Aquilino Ribeiro dedicou-lhe, em 1922, o seu livro de contos e novelas Estrada de Santiago, escrevendo um expressivo e comovido texto. Em1924, Raul Proença, no prefácio do primeiro volume do seu Guia de Portugal, agradeceu-lhe a colaboração prestada. Publicou em 1926, na Seara Nova, um soneto, uma das poucas obras que nos legou. Em 1927, atingiu o limite de idade, sendo aposentado do seu cargo na Biblioteca Nacional. Durante algum tempo, exerceu as funções de director-interino daquela instituição. Na passagem do seu 90º aniversário, em 19 de Abril de 1947, um grupo de amigos prestou-lhe uma homenagem realizada no Museu de João de Deus. Com 91 anos, morreu em Lisboa no dia 18 de Setembro de 1948.
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Nota: este texto é uma versão simplificada do que publiquei em Vidas Lusófonas. (CL)

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