domingo, 4 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra - 38

Manuela Degerine

Capítulo XXXVIII

Décima etapa: Primeiro encontro

Fim de etapa, pensava eu, atravessando a ponte. Marquei encontro com um amigo por volta das oito horas e já estou muito atrasada, nem paro para tirar fotografias, tiro-as caminhando, enquanto seguro o bordão e agarro o chapéu (está vento) – uma ginástica complexa. A meio da ponte: o João Jorge telefona para avisar que se atrasou.

Disponho portanto de três quartos de hora, tempo suficiente para poisar num café, recuperar o fôlego, me pentear, comer uma sandes (haverá bom queijo?) e escrever o diário do dia. Quando saio, sigo pela Ferreira Borges, desço à Praça do Comércio, sinto frio, começo a tossir, acelero o passo. Não convém agora constipar-me... Ouço gritar e vejo uma rapariga a correr na minha direcção.

Fala em espanhol.

- Avistei-a de longe... É peregrina?

Que dizer? Trago botas, chapéu, bordão... Só me faltam a capa (substituída pelo saco-cama), a cabaça (metamorfoseada em garrafa de plástico) e a vieira (pesada) para integralmente coincidir com o jacobeu que vemos nos museus. Claro, como os hábitos de higiene e conforto mudaram da Idade Média a esta parte, carrego com uma mochila – o que nenhum peregrino da iluminura nem da escultura traz. (Aliás esta mochila, que agora todos trazemos, far-me-á sempre rir, quando ouvir, no futuro, falar desta descoberta que, pelos vistos, revolve o futuro de alguns peregrinos: as necessidades básicas não ultrapassam o que às costas podemos transportar. Cada vez que ouvir isto, hei-de na verdade rir-me, sem todavia fazer comentários, não quero diminuir as experiências-limite dos outros, pensando porém no contraste com os peregrinos da Idade Média: as nossas necessidades cabem na mochila com a condição de trazermos telemóvel e cartão de crédito, encontrarmos albergues, restaurantes, supermercados e acesso à Internet. Não por acaso perdurou a tradição de continuar até Finisterra, onde a roupa do peregrino era queimada, ritual de purificação, de renascimento para outra vida, sim, contudo também mera precaução higiénica, após tantos dias de caminhada e noites ao relento, sem duches nem lavagens de roupa.)

- Sou.

- Eu também! Vai para Santiago?

- Vou.

- Eu também!

Combinamos continuar juntas.

Encontro-me por fim com o João Jorge, que conduz a um restaurante de Barcouço. (Isto é: fora de Coimbra.) Como há anos não nos vemos, temos muita conversa atrasada, prolongamos o serão até tarde. Quando, por volta das duas da manhã, descalço enfim as botas, verifico os estragos do dia: tenho mais do que duas bolhas. Tanto num pé como no outro, um dos dedos está ferido em todo o perímetro, incluindo a unha. Na verdade... Será possível? Tenho duas bolhas... debaixo das unhas?!

Prefiro não me concentrar neste desastre. Enrolo os dedos em adesivo protector e quase rezo a Santiago para, dali por algumas horas, conseguir calçar as botas.

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