quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo LXXXII

Vigésima etapa: em Valença (continuação II)




Pela primeira vez, desde que navegamos de conserva, como se dizia nas naus da Índia, damo-nos ao luxo de fazer turismo. Hoje temos uma etapa de dezanove quilómetros e meio, isto é, comparando com o que caminhámos nos últimos dias, quase nada, por conseguinte, confiamos as bagagens aos bombeiros, muito prestáveis e acolhedores – e passeamos pela cidade. Já estive em Valença porém, na primeira e última visita, tinha quinze anos. Foi... Como dizer?... Há algum tempo!

Vesti o blusão da D. Graziela pois, apesar do sol, a temperatura não passa dos dez ou onze graus, significando isto que, por ora, não o posso ainda abandonar e portanto, durante o resto do dia, talvez até nos próximos, carregarei com ele na mochila. Lamento não ter trazido um dos meus – numerosos – blusões leves e quentes. Pensava que fizesse calor... Há muitos anos, quando andava no liceu, estudei o clima em Portugal: o noroeste distingue-se quanto a temperaturas e pluviosidade. Eu sabia isto de memória, agora aprendo-o com o corpo: não me volto a esquecer.

Começamos por percorrer o forte – muito bonito nos volumes, curvas, ângulos e tonalidades; o verde dos relvados prolonga-se no musgo das paredes – de onde admiramos Valença, em baixo, as montanhas, à volta e, ao longe, a cidade de Tui. Depois caminhamos pela cidade. E que agradável é caminhar sem mochila...

Lindas calçadas de seixos – como em Tomar antes dos pretensos melhoramentos da câmara. O chão limpo, as fachadas pintadas, as paredes brancas. Um regalo para os visitantes. Passeios de lajes, edifícios com cantarias, igrejas numerosas, a capela de S. Teotónio, a capela da Misericórdia... Um belo prédio com azulejos azuis, janelas e grades brancas. Visitamos as igrejas – já abertas. Vemos, quando abre, uma exposição sobre o Caminho de Santiago. Voltamos à capela de S. Teotónio; aponto a existência deste santo português, 1082-1162 – o primeiro, informa a placa por debaixo da estátua. Descubro, em toda a cidade, um único grafito; contra os benfiquistas. E que bom é caminhar sem mochila, não me canso de o repetir, sinto-me prestes a levantar voo.

Recordando-me dos horríveis pães que sempre comi em Espanha, interrogo-me se não devemos comprar o necessário para o almoço; porém, se for possível encontrá-lo em Tui, evitar-nos-á carregar com mais um quarto de quilo.

Aproveito para questionar os bombeiros, dois grandes rapagões de grande sustento:

- Em Espanha encontramos bom pão?

- Do outro lado não é Espanha: é a Galiza. Encontram pão do melhor.

- Deste aqui?... Escuro, pesado, gostoso?

- Claro que sim.

- Não é do espanhol, sem gosto nenhum, todo branco e cheio de ar?...

- Desse também encontra mas, se preferir do bom, tem por onde escolher.

O peregrino de Santiago deixou para trás inúmeras situações que antes lhe ocupavam o espírito e que, de regresso a casa, voltarão de novo a importuná-lo; contudo aqui as prioridades modificaram-se. Há um guia francês muito popular cujo título é a inscrição MIAM MIAM DODO que se pode ler na catedral de Sainte-Foy, em Conques, no caminho que parte de Le Puy-en-Velay, a qual significa, em linguagem infantil, comida e dormida mas, claro, na catedral, corresponde a abreviações com sentido religioso. Os peregrinos aliviaram, como diziam os venezianos, a vida da carga material, todavia restam, para além da mochila, mais dois pesos: a comida e a dormida.

Talvez afinal estas duas preocupações, graças aos protectores da caminhada, o divino Mercúrio para os pagãos, Santiago Maior para os cristãos, expulsem as outras do nosso espírito... Os albergues resolvem o problema da dormida, embora o excesso de peregrinos, em todo o Camino Francés, produza não raros percalços e, na Via Lusitana, de Lisboa até ao Porto, a ausência de albergues, excepto em Fátima, a incerteza quanto à disponibilidade dos bombeiros, que podem ter acolhido peregrinos mas deixado de os acolher, cujo gasalhado é, não raro, dos mais básicos, criem uma permanente incerteza e obriguem a uma constante adaptação. Maria, por exemplo, à qual convinha o sistema espanhol dos albergues mas não o alojamento precário da Via Portuguesa, acabou por não aguentar estas condições: a tendinite terá revelado de maneira espectacular o cansaço da caminhante.

Quanto à alimentação, notamos que, a pouco e pouco, se vai modificando. Alguns comem mais, outros menos porém, quase todos, de maneira distinta da habitual, por se encontrarem fora de casa, muitos num país estrangeiro, por no instante em que sentem fome não haver restaurantes, por à noite se sentirem demasiado cansados para voltar a sair, por seguirem os conselhos dos roteiros e privilegiarem ingredientes que, na rotina da vida quotidiana, não consomem com tal frequência... No que me toca é, sem dúvida, uma das impressões mais intensas que há-de ficar desta busca dos limites. Alimento-me, durante quinze dias, com pão e queijo, achando este regime mais delicioso que qualquer iguaria jamais saboreada... Os restaurantes tornaram-se enjoativos pela abundância e mistura de produtos: um bom pão, um bom queijo, um bom fruto, um pedaço de chocolate preto bastam para me deliciar de maneira suprema. E, tal como a maioria das pessoas recorda as sobremesas da avó, chegando a acreditar que, então, naquela infância mais ou menos longínqua, quase sempre encantada, a comida tinha mais sabor, eu, daqui em diante, lembrar-me-ei do sabor incomparável do pão no Caminho de Santiago de Compostela.

É que, não apenas na apreciação dos pesos ou das distâncias mas em tudo, somos um sujeito que se confronta com o mundo e o que cada um de nós dele sabe é pouco mais do que a maneira como, em determinadas circunstâncias, o avaliou. Ninguém ignora isto contudo, na vida quotidiana, tendemos a esquecê-lo. Por tal razão – e mesmo se apenas por ela – não é inútil percorrer este longo Caminho de Santiago. Ultreia, isto é: mais além. Ultreia, sim.

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