Capítulo LXXXV
Vigésima primeira etapa: de Valença ao Porrinho (continuação II)
Vemos campos de milho do ano passado. As espigas foram apanhadas, ficou o resto da planta. Recordo-me de um tempo em que, nas Sarzedas do Vasco, a terra dos meus avós, também se cultivava milho: a bandeira era cortada, ainda verde, a folha apanhada e enfaixada, ambas serviam para alimentação das ovelhas, depois a espiga era colhida, as canas arrancadas e queimadas num borralho, cujas cinzas serviam para adubar a terra – não se desperdiçava nada. Aqui o abandono da planta denota uma exploração apressada: os agricultores são idosos ou vivem de outras actividades. Este parte, aquele parte, escreveu Rosalía no século XIX; mas o êxodo rural não atingiu só a Galiza.
O abandono dos campos é uma constante no Caminho de Santiago e fora dele; como, no mercado de Tomar, a maioria de produtores ronda os sessenta e cinco anos, receio que, dentro de pouco tempo, o resto dos terrenos ainda cultivados fique ao abandono: comeremos uva chilena, maçã brasileira e tomate holandês. Tudo sem gosto – claro.
Ainda fui testemunha, nos meus primeiros dez anos, de um mundo que entrara já em decadência e entretanto desapareceu, bastou porém para eu perceber que, de muitos pontos de vista, oferecia maior qualidade de vida do que o nosso: no ritmo, no equilíbrio, na segurança, na sustentabilidade. Não falo, é claro, dos ganhões do Alentejo, explorados nos limites da fome – os quais só podiam melhorar a situação; mas de pequenos proprietários da Beira Litoral. Este modo de produção autárquico, no qual só se comprava o sal, algum sabão (corava-se a roupa ao sol), um pouco de açúcar (adoçava-se com mel), alguns tecidos (a minha avó, ao contrário da mãe dela, não cultivava nem fiava o linho), alfaias e panelas de ferro, não voltará – é certo. Devemos todavia guardá-lo nas memórias, pois ajudar-nos-á, se formos inteligentes, a reflectir sobre o nosso.
A geração da minha mãe deixou as aldeias buscando uma vida melhor mas só encontrou uma vida diferente. Eu, com oito anos de estudos universitários, tantos livros e tantas viagens pelo mundo, a televisão, o dvd e a Internet – não sei mais do que a minha avó. De muitos pontos de vista, essenciais para a minha vida, sei menos do que ela; e chego às vezes a suspeitar que o vocabulário da minha avó tinha mais palavras. Para além disto, não beneficio de melhor saúde, embora tome mais medicamentos, a aparente vantagem de ganhar mais dinheiro, não me garante vida mais fácil; e nem ao menos sou mais respeitada: nunca ninguém insultou a minha avó. Conclusão lógica... Com o stress, o ritmo e todo este modo de vida, o ar, a água e a comida envenenados, as radiações disto e daquilo, vivo pior e viverei sem dúvida menos anos do que a minha avó. Chama-se a isto o progresso?
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