terça-feira, 31 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra




Manuela Degerine
Capítulo XCV

Vigésima terceira etapa: A mulher que vê passar os comboios (continuação)

O artista começa a impacientar-se. Mesmo na estação do Rossio, uma rebelde continuará rebelde, arranjará maneira de contestar, de protestar, de importunar, já chega de palavreado, ele pintava outro cenário, precisa de o entregar, a penúria é um cão teimoso, morde-lhe as canelas há décadas, pagaram-lhe a cena ferroviária, não volta a tocar-lhe, não e não, perdeu tempo demais a pintá-la, ao ponto de vir reclamar mudanças, não faltava mais nada, encomendaram-lhe o cenário para um comboio eléctrico, pudera ter despachado uma paisagem verde que, com duas vacas e três pinceladas, causa sempre efeito, em vez disso levou semanas na busca de um verdadeiro espaço ferroviário, encontrou em Pontevedra aquele albergue de peregrinos, uma imagem urbana complexa, pouco banal, ao contrário do que ela insinua, claro que estende roupa, também ele estende, como a maioria das pessoas, para além disso é escritora, percorreu quinhentos quilómetros a pé, quer situação menos trivial, é-o aliás tão pouco que, não raras vezes, pareceu bizarra, imprudente e até suspeita, resultando disto tudo, no fim de contas, o desencontro do costume, uma obra que ninguém encomendou e, pelas reacções, também não foi apreciada, bem feito para ele, nunca seguiu a moda nem a facilidade, resta-lhe aguentar as consequências.


Quem é que, nos dias de hoje, dá valor à pintura? As galerias expõem – e vendem – montes de lixo. Quem dá valor à técnica? Pensa que é fácil representar uma pele como a dela? Pois fique a saber: não é e não interessa a ninguém. Anda toda a gente a tirar fotografias. E ele pinta cenários disto e daquilo, quando calha, paredes de rua, as melhores encomendas, porém agora cobrem tudo com telas impressas, mais baratas, não admira, como se fosse igual... Cada obra dele é única – quem dá valor a isto? Recorre, tantas vezes, a outras tarefas para comer, pagar a renda, comprar pincéis, telas, tintas, aguarrás, um casaco, umas calças, uma camisa, a roupa nunca acima de um euro a peça, bem regateado na feira da ladra, já se vê, o pivete de borla, claro que lava e estende roupa, entre outras tarefas, o seu único luxo, a sua extravagância, levar o filho, que continua com a mãe, à praia ou ao cinema. Vive há dez anos sozinho: a boémia é fotogénica no cinema mas na realidade afasta as donzelas. Quem se importa com a solidão dos artistas? Ela sabe o quê da vida verdadeira? Veja passar o comboio e, se não lhe convém, paciência, três pinceladas: uma avozinha, apenas esboçada, para haver paz.

Interrompo aqui o debate. Receio que a história se conclua mal para esta mulher. Na verdade o comboio é verdadeiro e eu não sou feita de papel e tintas – fica o leitor mais sossegado.

Para simplificar as ideias, que se complicaram, dirijo-me para a cozinha, onde encontro fogão, copos e pratos; não precisamos de mais nada. Saio com Sérgio em busca de um supermercado. Interrogo dois passantes, que me aconselham, pouco mais adiante, um Froiz. Fazemos as compras contando cada passo e, sem força para mais caminhadas, regressamos de imediato ao albergue.

Continuo a pensar na mulher que vê passar os comboios. O pintor, pelo que percebo, enganou-se: ela não é escritora. Talvez o criador a imaginasse assim; no entanto a mulher – o nome dela é Rita – só se lembra de escrever as páginas do diário que acaba, com alguma surpresa, de encontrar; com os braços no ar, ignora quantos anos, não abriu aquela bolsa. E quem escolheu a camisola com uma frase em inglês?... Não foi ela de certeza.

Rita precisa agora de um momento de reflexão. Quer ler o diário, analisar o conteúdo da bolsa, despejar a mochila que sabe ter na camarata do albergue. Para além de sair do cenário, surge-lhe outra dificuldade: emancipar-se da mulher que o artista quis pintar.

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