7. Globalização hegemónica e contra-hegemónica
Um dos debates actuais gira em redor da questão de saber se há uma ou várias globalizações. Para a grande maioria dos autores, só há uma globalização, a globalização capitalista neoliberal, e por isso não faz sentido distinguir entre globalização hegemónica e contra-hegemónica. Havendo uma só globalização, a resistência contra ela não pode deixar de ser a localização auto-assumida. Segundo Jerry Mander, a globalização económica tem uma lógica férrea que é duplamente destrutiva. Não só não pode melhorar o nível de vida da esmagadora maioria da população mundial (pelo contrário, contribui para a sua pioria), como não é sequer sustentável a médio prazo (1996: 18). Ainda hoje a maioria da população mundial mantém economias relativamente tradicionais, muitos não são "pobres" e uma alta percentagem dos que são foram empobrecidos pelas políticas da economia neoliberal. Em face disto, a resistência mais eficaz contra a globalização reside na promoção das economias locais e comunitárias, economias de pequena-escala, diversificadas, auto-sustentáveis, ligadas a forças exteriores, mas não dependentes delas. Segundo esta concepção, numa economia e numa cultura cada vez mais desterritorializadas, a resposta contra os seus malefícios não pode deixar de ser a reterritorialização, a redescoberta do sentido do lugar e da comunidade, o que implica a redescoberta ou a invenção de actividades produtivas de proximidade.
Esta posição tem-se traduzido na identificação, criação e promoção de inúmeras iniciativas locais em todo o mundo. Consequentemente é hoje muito rico o conjunto de propostas que, em geral, podíamos designar por localização. Entendo por localização o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face-a-face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas. As propostas de localização incluem iniciativas de pequena agricultura familiar ( Berry, 1996; Inhoff, 1996), pequeno comércio local (Norberg-Hodge, 1996), sistemas de trocas locais baseado em moedas locais (Meeker-Lowry , 1996), formas participativas de auto-governo local (Kumar, 1996; Morris, 1996). Muitas destas iniciativas ou propostas assentam na ideia de que a cultura, a comunidade e a economia estão incorporadas e enraizadas em lugares geográficos concretos que exigem observação e protecção constantes. É isto o que se chama bio-regionalismo (Sale, 1996).
As iniciativas e propostas de localização não implicam necessariamente fechamento isolacionista. Implicam, isso sim, medidas de protecção contra as investidas predadoras da globalização neoliberal. Trata-se de um "novo proteccionismo": a maximização do comércio local no interior de economias locais, diversificadas e auto-sustentáveis e a minimização do comércio de longa distância (Hines e Lang, 1996: 490).[18] O novo proteccionismo parte da ideia de que a economia global, longe de ter eliminado o velho proteccionismo, é, ela própria, uma táctica proteccionista das empresas multinacionais e dos bancos internacionais contra a capacidade das comunidades locais de preservarem a sua própria sustentabilidade e a da natureza.
O paradigma da localização não implica necessariamente a recusa de resistências globais ou translocais. Põe, no entanto, o acento tónico na promoção das sociabilidades locais. É esta a posição de Norberg-Hodge (1996), para quem é necessário distinguir entre estratégias para pôr freio à expansão descontrolada da globalização e estratégias que promovam soluções reais para as populações reais. As primeiras devem ser levadas a cabo por iniciativas translocais, nomeadamente através de tratados multilaterais que permitam aos Estados nacionais proteger as populações e o meio ambiente dos excessos do comércio livre. Ao contrário, o segundo tipo de estratégias, sem dúvida, as mais importantes, só pode ser levado a cabo através de múltiplas iniciativas locais e de pequena escala tão diversas quanto as culturas, os contextos e o meio ambiente em que têm lugar. Não se trata de pensar em termos de esforços isolados e antes de instituições que promovam a pequena escala em larga escala.
Esta posição é que mais se aproxima da que resulta da concepção de uma polarização entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica aqui proposta. A diferença está na ênfase relativa entre as várias estratégias de resistência em presença. Em minha opinião, é incorrecto dar prioridade, quer às estratégias locais, quer às estratégias globais. Uma das armadilhas da globalização neoliberal consiste em acentuar simbolicamente a distinção entre o local e o global e ao mesmo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos reais da economia. A acentuação simbólica destina-se a deslegitimar todos os obstáculos à expansão incessante da globalização neoliberal, agregando-os a todos sob a designação de local e mobilizando contra eles conotações negativas através dos fortes mecanismos de inculcação ideológica de que dispõe. Ao nível dos processos transnacionais, da economia à cultura, o local e o global são cada vez mais os dois lados da mesma moeda como, de resto, salientei acima. Neste contexto, a globalização contra-hegemónica é tão importante quanto a localização contra-hegemónica. As iniciativas, organizações e movimentos que acima designei como integrantes do cosmopolitismo e do património comum da humanidade, têm uma vocação transnacional mas nem por isso deixam de estar ancorados em locais concretos e em lutas locais concretas. A advocacia transnacional dos direitos humanos visa defendê-los nos locais concretos do mundo onde eles são violados, tal como a advocacia transnacional da ecologia visa pôr cobro a destruições concretas, locais ou translocais, do meio ambiente. Há formas de luta mais orientadas para a criação de redes entre locais, mas obviamente elas não serão sustentáveis se não partirem de lutas locais ou não forem sustentadas por elas. As alianças transnacionais entre sindicatos de trabalhadores da mesma empresa multinacional, a operar em diferentes países, visam melhorar as condições de vida em cada um dos locais de trabalho, dando mais força e mais eficácia às lutas locais dos trabalhadores. É neste sentido que se deve entender a proposta de Chase-Dunn (1998), no sentido da globalização política dos movimentos populares de modo a criar um sistema global democrático e colectivamente racional.
O global acontece localmente. É preciso fazer com que o local contra-hegemónico também aconteça globalmente. Para isso não basta promover a pequena escala em grande escala. É preciso desenvolver, como propus noutro lugar (Santos, 1999) uma teoria da tradução que permita criar inteligibilidade recíproca entre as diferentes lutas locais, aprofundar o que têm em comum de modo a promover o interesse em alianças translocais e a criar capacidades para que estas possam efectivamente ter lugar e prosperar.
À luz da caracterização do sistema mundial em transição que propus acima, o cosmopolitismo e o património comum da humanidade constituem globalização contra-hegemónica na medida em que lutam pela transformação de trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada. Esta transformação tem de ocorrer em todas as constelações de práticas, mas assumirá perfis distintos em cada uma delas. No campo das práticas interestatais, a transformação tem de ocorrer simultaneamente ao nível dos Estados e do sistema interestatal. Ao nível dos Estados trata-se de transformar a democracia de baixa intensidade, que hoje domina, pela democracia de alta intensidade.[19] Ao nível do sistema interestatal, trata-se de promover a construção de mecanismos de controlo democrático através de conceitos como o de cidadania pós-nacional e o de esfera pública transnacional.
No campo das práticas capitalistas globais, a transformação contra-hegemónica consiste na globalização das lutas que tornem possível a distribuição democrática da riqueza, ou seja, uma distribuição assente em direitos de cidadania, individuais e colectivos, aplicados transnacionalmente.
Finalmente, no campo das práticas sociais e culturais transnacionais, a transformação contra-hegemónica consiste na construção do multiculturalismo emancipatório, ou seja, na construção democrática das regras de reconhecimento recíproco entre identidades e entre culturas distintas. Este reconhecimento pode resultar em múltiplas formas de partilha - tais como, identidades duais, identidades híbridas, interidentidade e transidentidade - mas todas elas devem orientar-se pela seguinte pauta transidentitária e transcultural: temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.[20]
domingo, 8 de agosto de 2010
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