terça-feira, 10 de agosto de 2010

Os processos de globalização (9) - Boaventura Sousa Santos

9. Graus de intensidade da globalização


A última precisão ao conceito de globalização defendido neste texto diz respeito aos graus de intensidade da globalização. Definimos globalização como conjuntos de relações sociais que se traduzem na intensificação das interacções transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais. A desigualdade de poder no interior dessas relações (as trocas desiguais) afirma-se pelo modo como as entidades ou fenómenos dominantes se desvinculam dos seus âmbitos ou espaços e ritmos locais de origem, e, correspondentemente, pelo modo como as entidades ou fenómenos dominados, depois de desintegrados e desestruturados, são revinculados aos seus âmbitos, espaços e ritmos locais de origem. Neste duplo processo, quer as entidades ou fenómenos dominantes (globalizados), quer os dominados (localizados) sofrem transformações internas. Mesmo o hamburguer norte-americano teve de sofrer pequenas alterações para se desvincular do seu âmbito de origem (o Midwest norte-americano) e conquistar o mundo, e o mesmo sucedeu com as leis de propriedade intelectual, a música popular e o cinema de Hollywood. Mas enquanto as transformações dos fenómenos dominantes são expansivas, visam ampliar âmbitos, espaços e ritmos, as transformações dos fenómenos dominados são retractivas, desintegradoras e desestruturantes; os seus âmbitos e ritmos, que eram locais por razões endógenas e raramente se auto-representavam como locais, são relocalizados por razões exógenas e passam a auto-representar-se como locais. A desterritorialização, desvinculação local e transformação expansiva, por um lado, e a reterritorialização, revinculação local e transformação desintegradora e retractiva, por outro, são as duas faces da mesma moeda, a globalização.





Estes processos ocorrem de modos muitos distintos. Quando se fala de globalização tem-se normalmente em mente processos muito intensos e muito rápidos de desterritorialização e de reterritorialização e consequentemente transformações expansivas e retractivas muito dramáticas. Nestes casos, é relativamente fácil explicar estes processos por um conjunto limitado de causas bem definidas. A verdade, porém, é que os processos de globalização nem sempre ocorrem desta forma. Por vezes são mais lentos, mais difusos, mais ambíguos e as suas causas mais indefinidas. Claro que é sempre possível estipular que neste caso não estamos perante processos de globalização. É isto mesmo o que tendem a fazer os autores mais entusiastas a respeito da globalização e os que vêem nela algo sem precedentes, tanto pela natureza, como pela intensidade.[21]



Penso, porém, que esta estratégia analítica não é a melhor porque, contrariamente ao que pretende, reduz o âmbito e a natureza dos processos de globalização em curso. Proponho, pois, a distinção entre globalização de alta intensidade para os processos rápidos, intensos e relativamente monocausais de globalização, e globalização de baixa intensidade para os processos mais lentos e difusos e mais ambíguos na sua causalidade. Um exemplo ajudará a identificar os termos da distinção. Escolho, entre muitos outros possíveis, um dos consensos de Washington: o primado do direito e da resolução judicial dos litígios como parte do modelo de desenvolvimento liderado pelo mercado. Em meados da década de oitenta, começaram a chegar aos tribunais de vários países europeus casos que envolviam figuras públicas, indivíduos poderosos ou notórios na actividade económica ou na actividade política. Estes casos, quase todos da área criminal (corrupção, burla, falsificação de documentos), deram uma visibilidade pública e um protagonismo político sem precedentes aos tribunais. Se exceptuarmos o caso do Tribunal Supremo dos EUA, desde a década de quarenta, os tribunais dos países centrais - e, de resto, também os dos países semiperiféricos e periféricos - tinham tido uma vida apagada. Reactivos e não proactivos, resolvendo litígios entre indivíduos que raramente captavam a atenção pública, sem intervenção nos conflitos sociais, os tribunais - a sua actividade, as suas regras e os seus agentes - eram desconhecidos do grande público. Este estado de coisas começou a mudar na década de oitenta e rapidamente os tribunais passaram a ocupar as primeiras páginas dos jornais, a sua actividade converteu-se numa curiosidade jornalística e os magistrados tornaram-se figuras públicas.



Tal fenómeno ocorreu, por exemplo, na Itália, na França, na Espanha e em Portugal, e em cada país teve causas próximas específicas. A ocorrência paralela e simultânea do mesmo fenómeno em diferentes países não faz dela um fenómeno global, a menos que as causas endógenas, diferentes de país para país, tenham entre si afinidades estruturais ou partilhem traços de causas remotas, comuns e transnacionais. E de facto este parece ter sido o caso. Pese embora as diferenças nacionais, sempre significativas, podemos detectar no novo protagonismo judicial alguns factores comuns. Em primeiro lugar, as consequências da confrontação entre o princípio do Estado e o princípio do mercado na gestão da vida social de que resultaram as privatizações e a desregulamentação da economia, a desmoralização dos serviços públicos, a crise dos valores republicanos, um novo protagonismo do direito privado, a emergência de actores sociais poderosos para quem se transferiram prerrogativas de regulação social, antes detidas pelo Estado. Tudo isto criou uma nova promiscuidade entre o poder económico e o poder político que permitiu às elites circular facilmente e, por vezes, pendularmente, de um para outro. Esta promiscuidade combinada como enfraquecimento da ideia de bem público ou bem comum acabou por se traduzir numa nova patrimonialização ou privatização do Estado que muitas vezes recorreu à ilegalidade para se concretizar. Foi a criminalidade de colarinho branco e, em geral, a corrupção que deram a notoriedade aos tribunais.



Em segundo lugar, a crescente conversão da globalização capitalista hegemónica em algo irreversível e incontornável combinada com os sinais de crise dos regimes comunistas conduziu à atenuação das grandes clivagens políticas. Estas, que antes permitiam a resolução política dos conflitos políticos, deixaram de o poder fazer e estes últimos foram atenuados, fragmentados e personalizados até ao ponto de se poderem transformar em conflitos judiciais. Chamamos a este processo político de despolitização, judicialização da política. Em terceiro lugar, esta judicialização da política, que foi, na sua génese, um sintoma da crise da democracia, alimentou-se desta. A legitimidade democrática que antes assentava quase exclusivamente nos órgãos políticos eleitos, o parlamento e o executivo, foi-se transferindo de algum modo para os tribunais.



Este fenómeno que, além dos países atrás referidos, tem vindo a ocorrer na última década em muitos outros países da Europa de Leste, da América Latina e da Ásia[22] e a mesma relação entre causas próximas (endógenas e específicas) e causas remotas (comuns, transnacionais) pode ser detectada ainda que com adaptações. Por esta razão, considero estarmos perante um fenómeno de globalização de baixa intensidade.



Muito diferente deste processo é o que, na mesma área da justiça e do direito, tem vindo a ser protagonizado pelos países centrais, através das suas agências de cooperação e assistência internacional, e pelo Banco Mundial, FMI e Banco Interamericano para o Desenvolvimento, no sentido de promover nos países semiperiféricos e periféricos profundas reformas jurídicas e judiciais que tornem possível a criação de uma institucionalidade jurídica e judicial eficiente e adaptada ao novo modelo de desenvolvimento, assente na prioridade do mercado e das relações mercantis entre cidadãos e agentes económicos. Para este objectivo têm sido canalizadas vultuosas doações e empréstimos sem qualquer precedente quando comparadas com as políticas de cooperação, de modernização e de desenvolvimento dos anos sessenta e setenta. Tal como no processo de globalização acima descrito, também aqui está em curso uma política de primado do direito e dos tribunais e dela estão a decorrer os mesmos fenómenos de visibilidade pública dos tribunais, de judicialização da política e da consequente politização do judicial. No entanto, ao contrário do processo anterior, este processo é muito rápido e intenso, ocorre pelo impulso de factores exógenos dominantes, bem definidos e facilmente reconduzíveis a políticas globais hegemónicas interessadas em criar, a nível global, a institucionalidade que facilita a expansão limitada do capitalismo global.[23] Trata-se de uma globalização de alta intensidade.



A utilidade desta distinção reside em que ela permite esclarecer as relações de poder desigual que subjazem aos diferentes modos de produção de globalização e que são, por isso, centrais na concepção de globalização aqui proposta. A globalização de baixa intensidade tende a dominar em situações em que as trocas são menos desiguais, ou seja, em que as diferenças de poder (entre países, interesses, actores ou práticas por detrás de concepções alternativas de globalização) são pequenas. Pelo contrário, a globalização de alta intensidade tende a dominar em situações em que as trocas são muito desiguais e as diferenças de poder são grandes.

Os textos são transcritos , com a devida vénia, da Revista Crítica de Ciências Sociais


© Boaventura de Sousa Santos

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