10. Para onde vamos?
A intensificação das interacções económicas, políticas e culturais transnacionais das três últimas décadas assumiu proporções tais que é legítimo levantar a questão de saber se com isso se inaugurou um novo período e um novo modelo de desenvolvimento social. A natureza precisa deste período e deste modelo está no centro dos debates actuais sobre o carácter das transformações em curso nas sociedades capitalistas e no sistema capitalista mundial como um todo. Defendi atrás que o período actual é um período de transição a que chamei o período do sistema mundial em transição. Combina características próprias do sistema mundial moderno com outras que apontam para outras realidades sistémicas ou extrasistémicas. Não se trata de uma mera justaposição de características modernas e emergentes já que a combinação entre elas altera a lógica interna de umas e outras. O sistema mundial em transição é muito complexo porque constituído por três grandes constelações de práticas - práticas interestatais, práticas capitalistas globais e práticas sociais e culturais transnacionais - profundamente entrelaçadas segundo dinâmicas indeterminadas. Trata-se, pois, de um período de grande abertura e indefinição, um período de bifurcação cujas transformações futuras são imperscrutáveis. A própria natureza do sistema mundial em transição é problemática e a ordem possível é a ordem da desordem. Mesmo admitindo que um novo sistema se seguirá ao actual período de transição, não é possível estabelecer uma relação determinada entre a ordem que o sustentará e a ordem caótica do período actual ou a ordem não caótica que a precedeu e que sustentou durante cinco séculos o sistema mundial moderno. Nestas circunstâncias, não admira que o período actual seja objecto de várias e contraditórias leituras. São duas as leituras alternativas principais acerca das mudanças actuais do sistema mundial em transição e dos caminhos que apontam: aleitura paradigmática e a leitura subparadigmática. A leitura paradigmática sustenta que o final dos anos sessenta e o início dos anos setenta marcaram o período de transição paradigmática no sistema mundial, um período de crise final da qual emergirá um novo paradigma social. Uma das leituras paradigmáticas mais sugestivas é a proposta por Wallerstein e seus colaboradores.[24] Segundo este autor, o sistema mundial moderno entrou num período de crise sistémica iniciado em 1967 e que se estenderá até meados do século XXI. Na sua perspectiva, o período entre 1967 e 1973 é um período crucial porque marca uma conjuntura tripla de pontos de ruptura no sistema mundial: a) o ponto de ruptura numa longa curva de Kondratief (1945-1995?); b) o ponto de ruptura da hegemonia dos EUA sobre o sistema mundial (1873-2025?); c) o ponto de ruptura no sistema mundial moderno (1450-2100?).
Wallerstein previne que as provas que apoiam esta tripla ruptura são mais sólidas em a) do que em b) e em b) mais do que em c), o que se compreende uma vez que o ponto final putativo dos ciclos está sucessivamente mais afastado no futuro. Segundo ele, a expansão económica mundial está a conduzir à mercadorização extrema da vida social e à extrema polarização (não só quantitativa mas também social) e, como consequência, está a atingir o seu limite máximo de ajustamento e de adaptação e esgotará em breve "a sua capacidade de manutenção dos ciclos rítmicos que são o seu bater cardíaco" (1991a: 134). O colapso dos mecanismos de ajustamento estrutural abre um vasto terreno para a experimentação social e para escolhas históricas reais, muito difíceis de prever. Com efeito, as ciências sociais modernas revelam-se aqui de pouca utilidade, a menos que elas mesmas se sujeitem a uma revisão radical e se insiram num questionar mais amplo. Wallerstein designa tal questionamento por utopística (distinto de utopismo), i.e., "a ciência das utopias utópicas... a tentativa de clarificar as alternativas históricas reais que estão à nossa frente quando um sistema histórico entra numa fase de crise, e avaliar nesse momento extremo de flutuações as vantagens e as desvantagens das estratégias alternativas" (1991a: 270).
De uma perspectiva diferente embora convergente, Arrighi convida-nos a revisitar as previsões de Schumpeter acerca do futuro do capitalismo e com base nelas coloca a questão schumpeteriana: poderá o capitalismo sobreviver ao sucesso? (Arrighi, 1994: 325; Arrighi e Silver, 1999). Há uns 50 anos, Schumpeter formulou a tese de que "o desempenho actual e prospectivo do sistema capitalista é tal que refuta a ideia de o seu colapso ocorrer sob o peso do fracasso económico, mas o seu próprio sucesso corrompe as instituições sociais que o protegem e "inevitavelmente" cria as condições sob as quais não conseguirá sobreviver e que apontam fortemente para o socialismo como o seu aparente herdeiro" (Schumpeter, 1976: 61). Schumpeter era assim muito céptico acerca do futuro do capitalismo e Arrighi defende que a história poderá vir a dar-lhe razão: "A sua ideia de que uma outra viragem bem sucedida estava ao alcance do capitalismo revelou-se obviamente correcta. Mas as possibilidades indicam que, durante o próximo meio século, a história provará estar também certa a sua outra ideia de que a cada viragem bem sucedida se criam as condições sob as quais a sobrevivência do capitalismo é cada vez mais difícil" (Arrighi, 1994: 325). Em trabalho mais recente, Arrighi e Silver salientam o papel da expansão do sistema financeiro nas crises finais das ordens hegemónicas anteriores (holandesa e britânica). A actual financeirização da economia global aponta para a crise final da última e mais recente hegemonia, a dos EUA. Este fenómeno não é, pois, novo, o que é novo e radicalmente novo é a sua combinação com a proliferação e o crescente poder das empresas multinacionais e o modo como elas interferem com o poder dos Estados nacionais. É nesta combinação que se virá a sustentar uma transição paradigmática (1999: 271-289).
A leitura subparadigmática vê o período actual como um importante processo de ajustamento estrutural, no qual o capitalismo não parece dar mostra de falta de recursos ou de imaginação adequados. O ajustamento é significativo porque implica a transição de um regime de acumulação para outro, ou de um modo de regulação ("fordismo") para outro (ainda por nomear; "pós-fordismo"), como vem sendo sustentado pelas teorias da regulação.[25] De acordo com alguns autores, o período actual de transição põe a descoberto os limites das teorias de regulação e dos conceitos que elas converteram em linguagem comum como o conceito de "regimes de acumulação" e de "modos de regulação" (McMichael e Myhre, 1990; Boyer, 1996, 1998). As teorias da regulação, pelo menos as que tiveram mais circulação, tomaram o Estado-nação como a unidade da análise económica, o que fazia provavelmente sentido no período histórico do desenvolvimento capitalista dos países centrais em que essas teorias foram formuladas. Hoje, porém, a regulação nacional da economia está em ruínas e dessas ruínas está a emergir uma regulação transnacional, uma "relação salarial global", paradoxalmente assente na fragmentação crescente dos mercados de trabalho que transforma drasticamente o papel regulatório do Estado-nação, forçando a retirada da protecção estatal dos mercados nacionais da moeda, trabalho e mercadorias e suscitando uma profunda reorganização do Estado. Na verdade, pode estar a ser forjada uma nova forma política: o "Estado transnacional".
Como seria de esperar, tudo isto é questionável e está a ser questionado. Como vimos acima, a real dimensão do enfraquecimento das funções regulatórias do Estado-nação é hoje um dos debates nucleares da sociologia e da economia políticas. Inquestionável é apenas o facto de que tais funções mudaram (ou estão a mudar) dramaticamente e de um forma que questiona o dualismo tradicional entre regulação nacional e internacional.
Dentro da leitura subparadigmática do actual período de desenvolvimento capitalista há, contudo, algum consenso em torno das seguintes questões. Dada a natureza antagónica das relações sociais capitalistas, a reprodução rotineira e a expansão sustentada da acumulação de capital é inerentemente problemática. De modo a ser obtida, pressupõe a) uma correspondência dinâmica entre um determinado padrão de produção e um determinado padrão de consumo (i.e., um regime de acumulação) e b) um conjunto institucional de normas, instituições, organizações e pactos sociais, que assegure a reprodução de todo um campo de relações sociais sobre o qual o regime de acumulação está baseado (i.e., um modo de regulação). Poderá haver crises do regime de acumulação e crises no regime de acumulação e o mesmo se passa com o modo de regulação. Desde os anos sessenta, os países centrais estão a atravessar uma dupla crise do regime de acumulação e do modo de regulação. O papel regulatório do Estado-nação tende a ser mais decisivo nas crises do do que nas crises no, mas o modo como isso é exercido depende fortemente do contexto internacional, da integração da economia nacional na divisão internacional do trabalho e das capacidades e recursos institucionais específicos do Estado em articular, sob condições de crise hostis, estratégias de acumulação com estratégicas hegemónicas e estratégias de confiança.[26]
A leitura paradigmática é muito mais ampla do que a leitura subparadigmática, tanto nas suas afirmações substantivas como na amplitude do seu tempo-espaço. Segundo ela, a crise do regime de acumulação e do modo de regulação são meros sintomas de uma crise muito mais profunda: uma crise civilizatória ou epocal. As "soluções" das crises subparadigmáticas são produto dos mecanismos de ajustamento estrutural do sistema; dado que estes estão a ser irreversivelmente corroídos, tais "soluções" serão cada vez mais provisórias e insatisfatórias. Por seu lado, a leitura subparadigmática é, no máximo, agnóstica relativamente às previsões paradigmáticas e considera que, por serem de longo prazo, não são mais que conjecturas. Sustenta ainda que, se o passado tem alguma lição a dar-nos, é a de que até agora o capitalismo resolveu com sucesso as suas crises e sempre num horizonte temporal curto.
A confrontação entre leituras paradigmáticas e leituras subparadigmáticas tem dois registos principais, o analítico e o ideológico-político. O registo analítico, como acabámos de ver, é a formulação mais consistente do debate sobre se a globalização é um fenómeno novo ou um fenómeno velho. Porque se assume que o novo de hoje é sempre o prenúncio do novo de amanhã, os autores que consideram a globalização um fenómeno novo são os mesmos que perfilham as leituras paradigmáticas, enquanto os autores que consideram a globalização um fenómeno velho, renovado ou não, são os mesmos que perfilham leituras subparadigmáticas.[27]
Mas esta confrontação tem também um registo político-ideológico, uma vez que estão em causa diferentes perspectivas sobre a natureza, o âmbito e a orientação político-ideológica das transformações em curso e, portanto, também das acções e das lutas que as hão-de promover ou, pelo contrário, combater.
As duas leituras são de facto os dois argumentos fundamentais a respeito da acção política nas condições turbulentas dos nossos dias. Os argumentos paradigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acção transformadora enquanto os argumentos subparadigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acção adaptativa. Trata-se de dois tipos-ideais de actores colectivos. Alguns actores sociais (grupos, classes, organizações) aderem apenas a um dos argumentos, mas muitos deles subscrevem um ou outro, consoante o tempo ou o tema, sem garantirem fidelidades exclusivas ou irreversíveis a um ou a outro. Alguns actores podem experienciar a globalização da economia no modo subparadigmático e a globalização da cultura no modo paradigmático, enquanto outros as podem conceber de modo inverso. Mais do que isso, alguns podem conceber como económicos os mesmos processos de globalização que outros consideram culturais ou políticos. Os actores que privilegiam a leitura paradigmática tendem a ser mais apocalípticos na avaliação dos medos, riscos, perigos e colapsos do nosso tempo e a ser mais ambiciosos relativamente ao campo de possibilidades e escolhas históricas que está a ser revelado. O processo de globalização pode assim ser visto, quer como altamente destrutivo de equilíbrios e identidades insubstituíveis, quer como a inauguração de uma nova era de solidariedade global ou até mesmo cósmica.
Por sua vez, para os actores que privilegiam a leitura subparadigmática, as actuais transformações globais na economia, na política e na cultura, apesar da sua relevância indiscutível, não estão a forjar nem um novo mundo utópico, nem uma catástrofe. Expressam apenas a turbulência temporária e o caos parcial que acompanham normalmente qualquer mudança nos sistemas rotinizados.
A coexistência de interpretações paradigmáticas e de interpretações subparadigmáticas é provavelmente a característica mais distintiva do nosso tempo. E não será esta a característica de todos os períodos de transição paradigmática? A turbulência inevitável e controlável para uns é vista por outros como prenúncio de rupturas radicais. E entre estes últimos, há os que vêem perigos incontroláveis onde outros vêem oportunidades para emancipações insuspeitáveis. As minhas análises do tempo presente, a minha preferência pelas acções transformadoras e, em geral, a minha sensibilidade - e esta é a palavra exacta - inclinam-me a pensar que as leituras paradigmáticas interpretam melhor a nossa condição no início do novo milénio do que as leituras subparadigmáticas.[28]
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
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