terça-feira, 17 de agosto de 2010

Uma situação bloqueada

Fernando Pereira Marques

Entre os vários factores que bloqueiam a situação política em Portugal existe, com particular relevância, o da cultura democrática dominante, que, mais de 30 anos após o 25 de Abril de 1974, não evoluiu de acordo com as exigências funcionais das instituições.

Refiro-me à concepção de política - nos planos ético e prático - dos dirigentes, nos vários patamares, dos partidos da alternância e das clientelas respectivas. Esses dois partidos "rotativos" - como se dizia no século XIX - são formações fracamente estruturadas ideologicamente - de acordo com a sua natureza catch-all - e não têm o suporte de movimentos sociais; o PSD logo na sua génese - por força das circunstâncias históricas -, o PS sobretudo a partir da liderança de António Guterres. Explica-se, assim, do ponto de vista funcional, a fragilidade das instâncias nacionais dos mesmos perante o aparelho, organizado a partir do poder local (ou regional, veja-se o caso da Madeira) e que possui enorme capacidade de pressão, nomeadamente por via dos canais de financiamento. As oligarquias intermédias deste modo formadas condicionam decisões, a selecção de quadros e a constituição das listas.

PS e PSD reagem à conjuntura mas não conseguem moldá-la, não possuem direcções eficazes na formulação de estratégias ou na elaboração programática nem produzem dinâmicas de intervenção no tecido social e de filtragem qualitativa do pessoal político, além de estarem condicionados pelos interesses organizados. O que redunda numa espécie de permanente navegação à vista e à bolina, de gestão do curto prazo, com mais ou menos Scut - tornadas grande questão nacional -, apregoadas intenções tácticas de "reformas estruturais" e de revisão constitucional, ou arrependimentos tardios quanto a decisões tomadas, como, por exemplo, a compra de submarinos.

No que se refere aos demais partidos com representação parlamentar, a esquerda explora a função tribunícia e auto-exclui-se da esfera da governação central, o CDS limita-se a capitalizar o seu potencial de coligação e a procurar manter um espaço próprio de afirmação como partido pivot.

Acresce, ainda no respeitante à cultura democrática, que não se desenvolveram hábitos sólidos de participação, nem atitudes de responsabilização colectiva que passariam pelo conhecimento dos mecanismos institucionais - em particular parlamentares -, pela capacidade crítica, mas também pela confiança. Claro que a responsabilidade maior por estes factos não é dos cidadãos, pois não se tem fomentado uma pedagogia cívica na escola, nos partidos e no próprio Parlamento. Pedagogia que leve os detentores de cargos públicos e as instituições a regerem-se pela ética republicana do rigor, da modéstia, do serviço e da defesa do bem comum, ao mesmo tempo que faça dos portugueses não meramente eleitores - no plano político - e consumidores - no plano económico - mas cidadãos completos.

Neste contexto, o que se observa, no fundamental, mobilizando a opinião pública, são faits divers circunstanciais e derivas de carácter demagógico e justicialista, que os media e certos grupos e corporações alimentam. Geram-se tensões entre órgãos de soberania e enfraquece-se a autoridade do Estado. A oposição pode - como mostram as sondagens - capitalizar o desgaste do Governo, mas não traz consigo uma mudança qualitativa quanto ao funcionamento da democracia que só surgirá de um processo complexo de transformação e de reforma dos sistemas de partidos e político. A maioria, como dissemos, gere a conjuntura, mas não obtém a capacidade estratégica de lançar bases para o futuro.

Por fim, tudo isto se inscreve num quadro global de desmantelamento pelo capitalismo triunfante do modelo social construído após a II Guerra Mundial na generalidade dos países desenvolvidos, mas também entre nós - mais tarde e de forma incipiente -, o que aprofunda as clivagens entre os partidos de governo e o seu eleitorado, pois nem as classes intermédias são poupadas. Pelo que ou esses partidos reconstroem, cada um, uma identidade orgânica e ideológica que canalize e estruture os conflitos ou, agravando-se o bloqueamento, perspectivam-se - como noutros países - sérias rupturas sociais e políticas.

2 comentários:

  1. Muito bom. Como dizia nos seus textos Boaventura Sousa santos é preciso enfraquecer o estado para que as instituições que regulamentam sejam, tambem elas, globais.E as circunstâncias em que nasceram estes partidos já não existem, é necessário uma revisão ideológica. Hoje o estado é a realização dos interesses de corporaçãoes há muito a viver à sua custa.O estado perdeu os valores da solidariedade,credibilidade e de pessoa de bem.

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  2. Excelente análise. E corajosa, considerando que é produzida por um ex-deputado e qudro dirigente do Partido Socialista. No essencial, coincide com a leitura que faço da situação política actual - um executivo que comete erros sucessivos e se desgasta aos olhos da opinião pública e uma oposição que vai capitalizando esse desgaste, mas que, todos sabemos, é incapaz, desprovida de cultura democrática (refiro-me ao PSD, presumível futuro ocupante da cadeira do poder) - uma agência de tachos e empregos e não um partido. Embora não se calem cm os "jobs for the boys", anseiam por distribuir privilégios pela sua insaciável clientela. «Rupturas sociais e políticas», Fernando? Perante este panorama triste, dois partidos que alternadamente ocupam o poder e vão, numa espiral descendente, conduzindo o País para o caos, um PCP absorvido por lutas corporativas - umas mais justs do que outras - um Bloco de Esquuerda, que diz verdades, mas se deixa apanhar nas voltas do folclore... Estamos mal.

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