terça-feira, 21 de setembro de 2010

A criança, a sua mente cultural e os seus sentimentos


Raúl Iturra


Tenho investigado, escrito e falado, sobre educação. Falemos então de educação, falemos das crenças da mente que deve ser educada. Conhecido é que o autor do presente texto não tem sentimentos de fé. Conhecido é, também, que foi educado dentro das ideias ocidentais que, por acaso histórico, são cristãs. Ideias que são partilhadas, não apenas pelos cristãos romanos, arménios, ortodoxos gregos ou russos, libaneses, maronitas islâmicos ou de outros países orientais, em paz e convívio com os muçulmanos, essa grande maioria com quem o Ocidente comunga a mesma Bíblia. Bíblia designada pelos Muçulmanos El – al – Corão, texto ditado, por desconhecimento da escrita, pelo Patriarca Maomé a sua filha Fátima. Entre os cristãos romanos, anglicanos e presbiterianos, a Bíblia usada foi sendo escrita pelos reis da Palestiniana, por mulheres corajosas que lutaram pela sua liberdade, como Judite, e por sacerdotes ou reis que sabiam da História Palestiniana e ditaram as suas leis.

Quem quer que tenha sido o (s) autor (es) destes textos, como o Livro Êxodo, atribuído a Moisés ou, da mesma Bíblia, o denominado Génesis, dito ser uma verdade revelada pela divindade a Abram escrito pela sua filha Séfora. Digo, fosse quem fosse o autor dos textos, uma verdade é certa, as crianças devem aprender os princípios, leis, ideias, orações, rituais e pensamentos de interacção social, a partir de textos como os mencionados, aos quais devem-se, ainda, acrescentar as Cartas de Paulo de Tarso que lhe foram ditadas pelo irmão de Jesus, Tiago o Menor.

Formas de entender e interpretar a realidade, que eu designo por mente cultural, conceito organizado após análise de mais de trezentas crianças oriundas, especialmente, da Galiza, Portugal, Picunche da Cordilheira dos Andes na América Latina, Escócia, Inglaterra, França e Holanda. Povos que fazem das suas crianças devotos de dogmas, incutidos nas suas ideias para os orientar através dos afazeres da vida e da interacção social, das hierarquias e da relação entre classes sociais, como foi definido por Karl Marx, devoto luterano (casado com uma mulher profundamente católica), que Bento XVI, Joseph Ratzinger, louva no seu livro Jesus von Nazareth, editado em Alemão por Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, Abril de 2007, e em Outubro de 2007, em Português, editado por A Esfera dos Livros, Lisboa.

A mente cultural é esse conceito que guarda as ideias da interacção não somente na vida social, mas também na denominada vida no mais além, como no respeito pelos adultos e pelos colegas e amigos de escola ou brincadeiras. Conceito que todo o educador e analista da infância deve conhecer, para ser capaz de entender medo, arrebato, subordinação, obediência, livre arbítrio e outras actividades e pensamentos que nos acompanham até à morte, queiramos acreditar ou não.

Eu diria aos Educadores da Infância que ou se tem profundo conhecimento da catequese ou é impossível educar, como o tenho referido a médicos, psicanalistas e docentes de vários graus de ensino, para serem capazes de saber orientar. Ninguém, por este facto, está obrigado a ter sentimentos de fé, mas aqueles que os têm devem abster-se de os pregar, respeitando assim a procura insaciável dessa pequena, muita vazia por um tempo, mente cultural.

Não é porque eu o diga: são quarenta anos de experiência entre crianças e os seus adultos, que me têm mostrado que, apesar do abandono de crenças mais tarde na vida, o comportamento continua a ser pactuado em paz, serenidade e solidariedade, denominado pelos cristãos caridade, feio nome para quem deve conviver com outros: parece esmola, enquanto solidariedade é a mente cultural em actividade com respeito pelos outros.

Para educar, é preciso conhecer as bases da cultura que é a religião, e a religião, como sabemos, orienta a cultura.

Finalmente (não por ter acabado o texto) devemos entender uma outra crença da criança: a da confiança nos seus adultos, a sua emotividade. Emotividade, qualidade ou carácter de emotivo; que tem ou revela emoção. A emoção é a confiança e o amor que uma criança demonstra aos seus adultos. Adultos que as acolhem e acarinham. Emoção é uma experiência subjectiva, associada ao temperamento, personalidade e motivação. A palavra em inglês emotion deriva do francês émouvoir. É baseada do latim emovere, onde o é - (variante de ex-) significa 'fora' e movere significa movimento. O termo relacionado motivação é assim derivado de movere. Sendo a emoção uma delicadeza e gentileza dos mais novos para os membros da sua família, vizinhos e amigos.

Essa emoção gera confiança de amor para todas essas pessoas. Existem, no entanto, emoções falidas, confianças falidas, enganosas, enganos no amor que a criança entrega ao seu adulto. Acontece imensas vezes, quando o adulto abusa dos mais novos, não apenas na sua emotividade, bem como no seu corpo. São os factos a que chamamos de pedofilia ou o amor libidinal de um adulto para uma criança. Criança obrigada pelo ser humano maior a aceitar intimidades corporais que não entende, como define Freud nos seus textos de 1906 escritos em Austro-Húngaro, traduzidos com a sua revisão, no mesmo ano, para a língua inglesa, intitulados Three Essays on the Theory of Sexuality e no de 1923, O Ego e o Id, publicado originalmente também em Austro-Húngaro (traduzido para a nossa língua, na Colecção Completa dos Textos de Freud, Imago 1999) e Melanie Klein, (1961 em Inglês) 1991 (em língua lusa): Inveja e Gratidão, Imago, Rio de Janeiro, intimidades que causam lesões emotivas na criança em relação à pessoa na qual tinha confiança. A criança nada entende, não tem experiência reprodutiva e o seu Id ainda não está desenvolvido, não precisa na sua tenra infância. Desta forma, a sua mente cultural desenvolve-se mais tarde, com uma lesão psíquica e emotiva. A sua mente cultural sofre e fica partida, como analiso em: O processo educativo: ensino ou aprendizagem? (1994), e desenvolvo, em vários artigos publicados na Revista Educação, Sociedade e Cultura, Afrontamento, Porto. As crianças ficam com medo à vida.

Tenho tentado curar esse medo que as desordens emotivas do adulto causam na infância abusada. Por vezes, tem sido possível, outras, nem por isso. Como referi antes, Freud e Melanie Klein têm definido que o abuso sexual nas crianças fere tanto as suas emoções, que não lhes permite desenvolver o amor a si próprias, nem a sua transferência para uma pessoa que pretenda amar. A sociedade é a custódia definidora que todo o ser humano tem uma pessoa parceira e os pequenos abusados, com a sua emotividade assustada, apenas conseguem disfarçar esse amor e reproduzirem com pessoas de gâmetas diferentes: cada uma das duas células (masculina e feminina) entre as quais se opera a fecundação dos animais e vegetais.

Não esquecerei como fiquei surpreendido nesses dias que visitei a ilha da Madeira em Portugal, ao pesquisar as relações sociais entre pescadores proletários de que resultou um texto sobre a tristeza, disfarçada de orgulho, que sentiam os pais das crianças entregues a uma rede pedófila que percorria todo o caminho da Bélgica até à Região autónoma da Madeira. É o crime de pedofilia, que pais e crianças não entendem, por falta de experiência. Apenas pensam no dinheiro que lhes é pago por levarem as suas crianças para o estrangeiro para, supostamente, trabalharem. Que fosse pedofilia, eles não entendiam. Apenas debatiam o que andava na moda: o matrimónio entre pessoas do mesmo sexo, uma surpresa para eles. Denominavam homossexualidade a este novo tipo de matrimónio, o que parecia não ser um facto normal, mas também não causava surpresa: no dia que escrevo este texto, acabam de ser promulgadas as alterações ao Código Civil que nos governa, com opinião favorável do Tribunal Constitucional que tem como atribuição que as leis estejam coordenadas com a Constituição. Faltava a promulgação e todos os que saíram do armário em que escondiam a sua preferência sexual, já falam do seu matrimónio com uma pessoa do mesmo género. A mente cultural na Madeira e noutros sítios de Portugal, debatia o que não entendia mas conhecia pelo debate local e internacional.

A pedofilia (não relacionada com as novas formas de matrimónio por ser um acto voluntário entre adultos) sempre existiu, como analisa Marguerite Yourcenar no seu texto Mémoires d'Hadrien, publicado em França pela primeira vez em 1951, Editions Larousse. Há versão portuguesa na Editora Record do Brasil. Ainda mais entre povos nativos, estudados por David Herdt, Maurice Godelier e por mim próprio no meu texto do ano 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te, porque te amo, Afrontamento, Porto. Mas, como todos analisamos, são formas rituais de pedofilia, por existir o pensamento analógico de que o sémen apenas aparece se é retirado de outro corpo.

Antinoo, o amante de Adriano. Busto de Antínoo na Villa Adriana, em Tívoli. Actualmente no Louvre

Entre nós a pedofilia tem sido um segredo bem guardado, começando agora a ser desvendado pela imprensa, a magistratura e é, pela primeira vez, punido com prisão: não é um ritual, é um vício, condenado pelo Código Penal de 1982, aprovado pelo decreto-lei Nº 400 e reeditado em 1987 e reeditado pela lei Nº 57, de 4 de Setembro de 2007. No artigo 165 diz: Abuso Sexual de Pessoa incapaz de resistência.

1- Quem praticar o acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos.

2- Quem, nos termos previstos no Nº anterior, praticar com outra peoa cópula, coito anal ou oral, é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

Pelo exposto, é impossível não comentar esta lei que me parece leve para tanta criminalidade contra pessoas indefesas.

O trauma do pequeno ou pequeno violado(a), é apenas curado, quando possível, pela psicanálise, ou pela aceitação que não foi da sua responsabilidade o abuso de que foi alvo enquanto menor. A libido é forte e a falta de maturidade tão arrogante, que as crianças sofrem até à idade adulta, sem, por vezes, deixarem de procurar o vício ganho na infância. Já adultos, tornam à procura do vício, ou permanecem dentro dele. O matrimónio de pessoas do mesmo sexo acaba, assim, por curar esta felonia. Os sentimentos das crianças ficam feridos até ao dia da sua morte, por causa de terem ficado crianças em idade adulta. A sua mente cultural não se desenvolve ao ficarem feridos os seus sentimentos e, consequentemente, não permitirem desenvolver a sua emotividade.

A mente cultural está, também, formada pelas ofensas às emoções. Factos da infância que não são esquecidos e não permitem o crescimento.

Esta realidade não é exclusiva dos romanos. É muito vulgar no Islão, fé que proíbe tocar nas mulheres até ao casamento. Entre muçulmanos e islâmicos, não é sequer punida pela lei. Entre nós, a legislação que contempla a sua punição é também muito recente, data de 1998.

A mente cultural permite, por outro lado, a existência de casas para desafogar a libido de homens e mulheres, apenas que não são comentadas. Descobri-o na minha pesquisa ente os Picunche do Chile e a aristocracia da hoje derrubada, cidade de Talca. Fui convidado, fui seduzido, mas a minha educação moral e libidinal, rejeitou-o.

Este é mais um texto, como outros que tenho escrito sobre a pedofilia, quer nesta revista, especialmente Prostituição da criança Devuélvanos al niño. Canção sem palavras, que pode ser lida em

http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=88&doc=7946&mid=2 , quer na revista quadrimestral Protohistoria de Buenos Aires, nomeadamente Año 4, Nº 4, com os quais pretendo chamar à atenção e ao debate assunto tão sério, entre nós.

A mente cultural da infância é uma salada de ética, imoralidade, felonias confiança e fé. Foi o que me levou a criar a especialidade de Etnopsicologia da Infância, aprendida em Paris, nos meus tempos de ensino, com Georges Devereux e a sua Etnopsiquiatria dos Mohave dos Estados Unidos.

Nem todos, é evidente, têm uma mente cultural assim formada, contudo os dados demonstram haver mais do que nós sabíamos ou gostaríamos de saber. Urge também destrinçar quando se fala de felonia ou de ritual.

Felonia que entre nós, é, actualmente, punida, a partir da reforma do Código Penal de 2007.

Mente da criança, abuso das mesmas, sobretudo nestes dias em que nos visita Ratzinger, quem parece ocultar crimes de sacerdotes contra crianças, ou em que no Norte do nosso País há feridas na mente cultural causada por Sacerdotes, não me permitiam calar a boca nem deixar de escrever este texto.

2 comentários:

  1. As situações de abuso não são esquecidas ou varridas do funcionamento mental, embora se possa ajudar quem dele foi vítima a viver o melhor possível com essa marca do passado, numa vida individual e de relação mais saudável e equilibrada.
    A marca que é deixada varia na sua intensidade com aidade e sexo da criança, vulnerabilidades e competências psíquicas anteriores, tipo de abuso, número de vezes e circunstâncias em que de verificou, relação ou parentesco com o abusador, tempo decorrido entre o abuso, a sua revelação e o início de acompanhamento psícológico.
    Os sinais ou sintomas que provoca, são variáveis, como as alterações de comportamento e de humor, queixas de sono ou alimentares, quebra de rendimento escolar, sintomas psicossomáticos como dores de cabeça ou abdominais, imitação de comportamentos com outras crianças (verifica-se nas mais novos), dificuldades de relação e de vida afectivo-sexual (nos mais velhos) que também inclui a possibilidade de se tornarem adolescentes abusadores. Lembremos a identificação ao agressor, descrito já nos anos de 1940 por Anna Freud: “se não podes contra eles, junta-te e sê como eles”!
    A pedofilia, o abuso sexual pode vir do exterior mas, como já escrevi em texto publicado, é preciso não esquecer que a maioria dos abusos sexuais ocorrem dentro de portas, dentro da própria família ou vindos de pessoas que com ela se relacionam muito proximamente !!!

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  2. Muito bem, Clara! bela lição, é preciso dizer uma e outra vez.

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