terça-feira, 14 de setembro de 2010

A lição magistral de Miguel de Unamuno

Carlos Loures

No dia 12 de Outubro de 1936, Salamanca, uma das mais belas cidades de Castela, foi cenário de um drama. Um entre milhares dos que, por aquela época Espanha foi cenário. Quando a Guerra Civil foi desencadeada, de 17 para 18 de Julho, com o desembarque do Exército de África, Salamanca foi tomada pelas tropas rebeldes no dia 22. A cidade transformou-se na capital provisória, com a instalação de ministérios e das sedes de organizações falangistas. O reitor da Universidade, Miguel de Unamuno, defendeu inicialmente a sedição contra a República, fazendo um apelo aos intelectuais europeus para que apoiassem a rebelião. A sua adesão ao movimento foi breve. A repressão criminosa à solta pela cidade, os fuzilamentos sumários, depressa o puseram contra a barbárie fascista.

Os intelectuais eram presa apetecida pelos falangistas – e fácil, pois em geral não eram de grandes resistências. Às armas, opunham às vezes belos e corajosos discursos que provocavam gargalhadas aos imbecis das camisas azuis, discursos que muitas vezes eram cortados a meio pelo ladrar das espingardas. Em fins de Julho, nos bolsos do reitor amontoavam-se cartas de familiares e de amigos, de colegas e alunos seus presos – professores, escritores, jornalistas, artistas, pedindo-lhe que usasse a sua influência para livrar os entes queridos da morte. Unamuno foi, no início de Outubro, ao paço episcopal, onde Franco estava a residir e instalara o seu posto de comando, suplicar clemência para os amigos. Em vão, pois todos iam sendo executados.

Unamuno já não acreditava naquela gente e arrependeu-se de a ter apoiado com o seu prestígio de figura mundialmente conhecida, espantando e desiludindo a intelectualidade internacional que, salvo raras excepções, condenou o golpe militar fascista contra a República. Foi-se apercebendo, dia a dia, do horror que alastrava por Espanha. Em 12 de Outubro, decorreu na sala dos actos (o «paraninfo») da Universidade a abertura solene do ano académico. Unamuno, acabrunhado, decidira não falar e tomava apontamentos enquanto os discursos «patrióticos» se sucediam. De súbito, pôs-se de pé. As palavras brotaram-lhe de um jorro, como um impetuoso rio de lava:

«Falou-se aqui de guerra internacional em defesa da civilização cristã; eu próprio o fiz. Mas não, a nossa é apenas uma guerra incivil. » (…) «Vencer não é convencer e é preciso convencer, principalmente, e não pode convencer o ódio que não deixa lugar para a compaixão. Falou-se também de catalães e bascos, chamando-lhes anti-Espanha; pois bem, com a mesma razão podem eles dizer o mesmo. E aqui está o senhor bispo, que é catalão, para vos ensinar a doutrina cristã que não quereis conhecer, e eu, que sou basco, levei toda a minha vida a ensinando-vos a língua espanhola, a qual não sabeis…»

Nesta altura, o general Millán-Astray, que odiava Unamuno, que o acusara de corrupção, começou a gritar «-Posso falar? Posso falar?» A sua escolta puxou das armas e alguém entre o público gritou - «Viva a morte!». O general derramou todo o seu estúpido rancor, designando a Catalunha e o País Basco como cancros de Espanha. Contudo, acrescentou, o fascismo redentor de Espanha iria exterminá-los cortando em carne viva como um frio bisturi. Estava tão enraivecido que ficou sem voz. Ouviram-se então diversos vivas a Espanha. Fez-se um silêncio absoluto e mortal. Os olhos voltaram-se para Unamuno. Erguendo-se, este proferiu um discurso que seria a sua derradeira lição, a sua lição magistral:

«Conheceis-me bem e sabeis que não sou capaz de ficar em silêncio. Por vezes, ficar calado é o mesmo que mentir, pois o silêncio pode ser interpretado como aceitação» (…) «Acabo de ouvir o grito necrófilo e insensato de “Viva a morte!” Isto soa-me igual a “Morra a vida”. E eu que passei toda a vida a criar paradoxos que provocaram a reprovação e o enfado daqueles que os não compreenderam, tenho de vos dizer, com autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. Uma vez que foi proclamada em homenagem ao último orador, entendo que foi a ele dirigida, se bem que de uma forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele próprio é um símbolo da morte. E outra coisa. O general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que o diga em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, hoje em dia há demasiados inválidos. E depressa haverá mais se Deus não nos ajudar. Custa-me pensar que o general Millán-Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem, não um super-homem, viril e completo apesar das suas mutilações, um inválido, como disse, que não possua essa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em seu redor» (…)«O general Millán-Astray gostaria de criar uma Espanha nova, criação sem dúvida negativa, à sua própria imagem. Por isso ele desejaria uma Espanha mutilada».
Millán-Astray que entretanto recuperara a voz, rugiu: «Morra a inteligência!». Unamuno respondeu-lhe com a serenidade de quem se sabe perdido: «Este é o templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vós estais profanando o seu recinto sagrado. Sempre fui, apesar do que diz o provérbio, profeta no meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque tendes força bruta de sobra; mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir necessitais de uma coisa que vos falta – razão e direito na luta. E parece-me inútil pedir-vos que penseis em Espanha».

Carmen Polo, a mulher de Franco, deu o braço Unamuno e acompanhou-o até sua casa, protegendo-o da fúria dos falangistas. O marido censurou Millán por não ter executado o professor logo após o seu discurso. Houve quem propusesse a sua expulsão do cargo de reitor, acusado de tudo, o que da perspectiva fascista era condenável. Em 22 de Outubro Franco assinou o decreto da destituição. Prisioneiro em sua casa, deu uma entrevista ao escritor e filósofo grego Nikos Kazantzakis (1883-1957) em que, em certo passo, afirmou: «Um dia, em breve, levantar-me-ei, e lançar-me-ei na luta pela liberdade, eu sozinho. Não, não sou fascista, nem bolchevista; sou um solitário». Morreu em sua casa em 31 de Dezembro de 1936, de doença súbita. Apesar de tudo o que se tinha passado e de praticamente o terem mantido sob prisão domiciliária, os falangistas fizeram-lhe um funeral exaltante, como se em vida ele tivesse sido um deles. Morto, já não os pode desmentir nem afrontar.

Ortega y Gasset escreveu: «A voz de Unamuno ecoava sem parar por toda a Espanha há um quarto de século. Ao cessar para sempre, temo que o nosso país sofra uma era de silêncio atroz». Não se enganou – o «silêncio atroz» iria durar até 1975 e os seus ecos, traduzidos na herança que o regime democrático recebeu do fascismo, ressoam ainda na imposição de uma Espanha «Una» que sufoca a liberdade na Catalunha, no País Basco e na Galiza.

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