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Manuela Degerine
Capítulo CXVI
Vigésima sexta etapa: em Santiago de Compostela (continuação)
Percorro a cidade tentando ultrapassar um mal-estar que, em certos momentos, chega a ser vertigem. Nunca sofri de agorafobia mas aqui há instantes durante os quais, presa na multidão, no aperto de uma rua, preciso de fechar os olhos, respirar com calma – a angústia acalma-se.
Subimos à Oficina do Peregrino, na Rua do Vilar, para requerer a compostela. Pensava não a pedir, todavia agora, acompanho Sérgio; saio com ela na mão. Mais um diploma, afinal, nem mais nem menos importante do que os outros... Nenhum me obrigou a transpirar tanto e, vendo bem, não é certo que, para obter os outros, aprendesse mais.
O roteiro de Sérgio informa que o Parador Los Reyes Católicos, um hotel de cinco estrelas, oferece todos os dias, às 19 horas, o jantar aos dez primeiros peregrinos que apresentem a compostela. Não tenho paciência para isso – marco encontro com o meu companheiro de viagem às oito e meia. Amanhã vou-me embora... Prefiro passar estas horas nas ruas da cidade.
Entro na catedral: a bicha foi vencida. Sento-me a rememorar os encontros. Os bombeiros que me acolheram, o ucraniano que me deu boleia, os habitantes que me encheram a garrafa, os que me explicaram o caminho, os que pararam para conversar, os alberguistas benévolos, a senhora da promessa incumprida, os donos do café e supermercado em S. João de Ver, o automobilista de Grijó, a D. Graziela e o marido, o dono da pastelaria em Ponte de Lima, a massagista de Pontevedra... E Maria: que curou as minhas bolhas. E os venezianos: que partilharam o jantar comigo. E os outros. Muitos outros. Consulto o diário: não me quero esquecer de ninguém. Quase todos são católicos praticantes aos quais devo um agradecimento. Eu não acredito em orações – mas eles acreditam. E por isso me quero lembrar aqui deles.
Volto para a cidade. Dou voltas e mais voltas pela zona histórica. Tiro fotografias de gente a tirar fotografias, inevitavelmente, neste espaço saturado turistas, sentindo-me incapaz de, aqui e agora, atentar no que vejo. Talvez consiga ver a cidade no ecrã do computador – eu, que prefiro sempre as experiências directas. Estranho, não é?...
Agora, embora teime, é-me impossível. Repito a mim mesma que estrago os minutos de que disponho para conhecer Santiago de Compostela porém, ao mesmo tempo, interrogo o que – até hoje – nunca interroguei. Se não conheço Lisboa, onde vivo, hei-de conhecer Santiago? (Começo a tornar-me subversiva: a pergunta destruiria a indústria do Turismo, uma das mais poderosas na UE.) Lisboa é ou não a Torre de Belém? Também é. No entanto, quem visita a Torre de Belém, talvez conheça a Torre de Belém, se acaso conhecer, se não tirar apenas fotografias, antes dos pastéis; não conhece Lisboa. Não ignoro contudo que, para além de Santiago de Compostela (aliás a cidade interessar-me-á, quando voltar ao estado comum), esta catedral me é necessária para compreender a cultura europeia. Mas será que, pela simples presença neste espaço, me confundo com o Peregrino do tango? Sento-me a reflectir nisto tudo.
Eu, entre família e amigos temida como visitadora de museus, exposições e monumentos, aquela que se apresenta na abertura, que permanece até a empurrarem para a rua, nesta cidade de pedra e gente, com palácios, praças, igrejas, ruas, torres, românicas ou barrocas, órgãos, arcadas, colunas, capitéis, terraços, telhados, varandas, galerias, pátios, portais, pirâmides, escadas, grades, cantarias, brasões, fontes, cavalos, conchas, espirais, demónios, anjos, santos, apóstolos, Cristos, Santiagos, Nossa Senhora da Cerca, Fuga para o Egipto, Colexio de San Xerome, lajes gastas pelos pés, estilos justapostos e sobrepostos, pois, nesta cidade de Santiago de Compostela, após vinte e seis dias de caminhada para cá chegar: sinto-me alheia ao que vejo.
A maior diferença entre os peregrinos da Idade Média e os actuais é que agora, se quisermos, compramos um bilhete, apanhamos um avião, chegamos no mesmo dia. Por isso hoje, quem quer conhecer Santiago de Compostela, vem a Santiago de Compostela – não caminha durante vinte e seis dias. Agora o Caminho de Santiago existe por si mesmo; não é o que nos conduz aqui. No fim deste caminho, claro, há Santiago de Compostela, uma cidade que faz parte de outra vida, na qual fomos turistas, percorremos os museus e comprámos prendas, como toda a gente, na qual voltaremos provavelmente a inserir-nos. Eu, neste momento, sou peregrina.
Sinto-me aliviada quando por fim assento que não me encontro aqui para ver monumentos. Hei-de voltar. De avião. Com guias estudados e visita sistemática.
Compro uma sanduíche e como-a deambulando pelas ruas; agora menos cheias. Telefono à família. Cruzo-me com os alemães de Valença, dormiram no Parador Los Reyes Catolicos. (Quando voltar dormirei no Parador.)
Volto a encontrar-me com Sérgio. (O meu camarada traz-me um pedaço de tortilha e outro de tarte de amêndoa. Saboreio com mais apetite.)
Descrevemos várias linhas curvas à volta da catedral. Passamos outra vez pelo falso peregrino. Resistimos a repetidas ofertas de torrão de amêndoa ou de bolo de chocolate. Os Caprichos de Santiago. As Tartas de Santiago. O Casal Coton. Um termómetro indica seis graus.
Regressamos ao Seminário Menor.
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
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Isso, Manuela, do que me lembro melhor são as pedras gastas da calçada, Comove perceber que já ali estiveram milhões de peregrinos.
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