sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O drama do senhor Joaquim

Hélder Costa

A propósito dos recentes escandalos das falencias fraudulentas, dos fechos de fabricas, e outros “ acidentes” devidamente apadrinhados e protegidos “ por quem de direito”, recordei uma história de proveito e exemplo que parte de factos verídicos.

O pós- guerra e os anos 50 viram um grande desenvolvimento da actividade industrial corticeira no Alentejo Litoral e no Algarve.

Eram muitas dezenas de fábricas e fabriquetas que davam trabalho a milhares de operários, facto que, como se sabe, não era do agrado do professor Salazar, dado o foco de contestação social e política que constituíam. Mas a nossa história é outra, deixemos de parte os medos do senhor professor doutor.

Uma dessas pequenas fábricas era da propriedade do senhor Joaquim, que aí trabalhava mais três operários. O negócio era simples: compravam a cortiça aos proprietários agrícolas, depois era cozida, raspada, escolhida, e faziam fardos que eram vendidos a um exportador, normalmente da zona do Barreiro.


Os anos decorriam na calma e surdez da época, as contas estavam em dia, e criava-se até uma relação de amizade entre o humilde fabricante e o todo poderoso homem do capital “com grandes relações na Inglaterra e na Alemanha.”

Um deles, particularmente afectivo, até oferecia brinquedos ao Zé Luís, o filho do casal e a esperança que já tivesse um futuro diferente da miséria em que os pais tinham vivido. Era o senhor Rolim, que afiançava que havia de tratar do futuro do Zé Luís, ajudaria nos estudos, arranjar-lhe-ia trabalho nas suas empresas, ele tinha é que ter tino. E a visita do senhor Rolim e dos seus homens terminava com um bom petisco feito pela Idalina, a mulher do senhor Joaquim.

- Vê-se mesmo que é boa pessoa, não tem vaidade nenhuma.

- Homem sério, boas contas. Olha, hoje deu-me vinte contos, os tais que estavam atrasados.

- E se a gente fosse dar um passeio a Lisboa, mostrar uns museus ao Zé Luis, depois íamos à revista, à Feira Popular...

- Está bem, Idalina. A gente também nunca sai daqui, parecemos uns bichos do mato.

E desta vêz, até te posso fazer a vontade, vamos comprar uma televisão.

Imagine-se a festa que foi com a chegada daquele aparelho que até dava cinema e variedades lá em casa!

Mas um dia, este novo Paraíso sofreu um abalão.

O senhor Rolim declarou falencia e fecharam dezenas de fábricas.

- E agora?, chorava a Idalina.

- Calma mulher, o senhor Rolim é uma pessoa séria, eu vou falar com ele a Lisboa, tudo se há-de arranjar. Até porque tenho de pagar aos homens e estava a contar com o dinheiro da ultima cortiça.

E o senhor Joaquim foi apanhar o combóio durante a noite.

Às escondidas, enquanto a Idalina lhe preparava o farnel, foi buscar a pistola e guardou-a na algibeira interior do casaco.

- Toma lá, Joaquim. Um bocadinho de peixe frito, queijo, pão.

- Chega e sobra. Não tenho fome nenhuma. Até amanhã.

- Dá cumprimentos ao senhor Rolim. E que Deus te acompanhe.

Deram aquele beijo fugidio e tímido, que parece continuar a ser pecado apesar de viverem juntos há anos e terem um filho, abraçaram-se e ele fêz-se ao caminho sem olhar para trás.



Na grande cidade não perdeu tempo e foi ao escritório na Baixa.

- Não, o senhor Rolim não está, disse o porteiro.

- Eu preciso de falar com ele, vim de longe.

- Tem vindo cá muita gente, mas ele não está cá. Deve ter ido ao estrangeiro.

- Eu não saio daqui sem falar com ele. Estou desgraçado, tenho de pagar aos homens que trabalham comigo, o senhor Rolim conhece-me bem, ele gosta muito do meu Zé Luís, eu nem acredito no que se está a passar.

- Foi uma desgraça, suspirou o porteiro, quem havia de dizer...uma casa destas! O senhor quer um cigarro?

- Não, obrigado, agora não me apetece. Mas não se pode dar um recado a alguém?

- Posso tentar telefonar para a secretária dele, mas aviso já o amigo que isto não vai dar resultado nenhum. Como é que o senhor se chama?

- Joaquim, diga que eu sou o Joaquim, o pai do Zé Luís.

- Um momento...sim, olhe menina Felizbela, desculpe incomodar mas está aqui um senhor , diz que veio de longe, é o senhor...

- Joaquim, pai do Zé Luís.

- É o senhor Joaquim, pai do Zé Luís. Está bem,eu espero.

- Esperamos um bocadinho, ela já diz qualquer coisa.

Trrim! Trrim!

- Já?! Sim, como? Ah, está bem.

O porteiro, surpreendido, desligou, e disse para o senhor Joaquim subir ao 7º andar.



- Oh senhor Joaquim, muito gosto em vê-lo, a senhora Idalina, o menino, esse malandro do Zé Luís, está bom?

- Tudo bem, graças a Deus.

- O senhor Joaquim vem por causa do dinheiro, não?

- É verdade, senhor Rolim, tenho de pagar aos homens, estava a contar que o senhor pagasse.

- Isto foi uma desgraça, foi uma desgraça.

- senhor Rolim, não há negócio, paciência. Mas dê-me a cortiça outra vêz, eu vejo se a vendo noutro sítio.

- Oh senhor Joaquim, eu já não tenho a cortiça, foi lá para fora,não me pagam, o que é que eu hei-de fazer?

- senhor Rolim, não me desgrace.Eu não posso acreditar que não tem dinheiro para me pagar aquela meia dúzia de tostões.

- Não tenho, não tenho. Desculpe, mas não posso fazer nada.

- Não me desgrace, disse o Joaquim apontando-lhe a pistola, não me desgrace, olhe que eu mato-o.

- Mate-me, mate-me, o que é que quer que eu faça?

O senhor Rolim chorou, invocou a amizade que tinha pela família do senhor Joaquim, gritou contra a sua infelicidade, e o Joaquim saíu sem ouvir as ultimas lamúrias.



- Foi assim, mulher, o que é que eu podia fazer?

- E agora?

- Agora vou vender a fabriqueta para pagar aos homens e vou trabalhar para a fábrica grande, o que é que queres que eu faça?

- É preciso vender tudo?

- se calhar, nem chega. Mas a televisão é que eu não vendo.

- Ainda bem. Olha , é a única alegria que nos resta desse tempo.

E o tempo passou, o senhor Joaquim foi para outra fábrica, o Zé Luís foi trabalhar porque era preciso ajudar a família, e assim se equilibrou aquela gente como foi possível.

Um dia, estavam a ver as notícias pela televisão.

Locutor- acabou de ser inaugurada no Algarve uma explendida unidade hoteleira de propriedade do senhor Rolim, célebre industrial de cortiça.

- O quê? Eu mato esse malandro, eu mato-o.

- Locutor - a inauguração teve a presença do sr.Almirante Américo Tomás, excelentíssimo Presidente da República e outras altas individualidades da vida política e empresarial portuguesas.

- Desliga essa merda, ou eu parto isso tudo.

- Oh Joaquim, pronto deixa isso. Já passou.

- Deixe isso, pai.

- Olha Zé Luís, abre os olhos, nunca te esqueças do que são estes malandros. Vou-me deitar.



O senhor Joaquim acabava de fazer a mala, e perguntou:

- então, não se despacham?

- Para onde é que vamos?

- É surpresa.

Longa viagem, chegaram ao Algarve, e dirigiram-se a um hotel magnifico.

- Tem quartos?

- Com certeza.

- Um para mim e para a minha mulher, e outro aqui para o ra paz.

Passaram dias magnificos, praia ,campo, grandes refeições no hotel.

- Bem, já estou farto de férias Vamos para casa, disse o senhor Joaquim.

- Já, oh pai, tinha combinado ir ao baile com a Isabel.

- Fica para a outra vêz. Vamos embora.

Na recepção.

- Ora o senhor Joaquim tem aqui a sua continha, são...

- Eu não pago. Ponha na conta do seu patrão, do senhor Rolim, desse malandro que me roubou e me pôs na miséria.

Gritos, barafunda, polícia, confusão.



O senhor Joaquim acordou em sobressalto.

- O que foi, homem?

- Foi um sonho.

- Mau ou bom?

- Bom. Já vou dormir melhor.

O senhor Joaquim nunca realizou este sonho, nem outro qualquer.

Emigrou, como tantos outros.

Quanto ao Zé Luís, dizem que ele fez parte de muitos que lutaram contra este fascismo de bom gosto e bom tom, e também contra o outro que apelidam de vulgar e ordinário.

E há quem afiance que ele é um dos soldados que está em cima de um tanque com um cravo na mão e a rir, no 25 de Abril.

Sem comentários:

Enviar um comentário