domingo, 26 de setembro de 2010

O Mistério da camioneta fantasma, de Hélder Costa -7

(Continuação)

Cena 6


Memórias de Carlos da Maia

Ciclorama com bambus chineses

(Berta Maia recorda Carlos da Maia )

Berta - (estende a mão sem folha) o que é isto ?

Carlos(com folha na mão) mostra. Ah, é uma carta do Sun–Yat-Sen...o 1º. Presidente da China...

Berta – que engraçado!

Carlos - na altura, não teve muita graça. Antes disso, ele esteve exilado em Macau, foi médico no hospital. Não o aceitavam em nenhum país. Como Macau tinha um estatuto de independência (quase), ficou por ali.

Berta – Que interessante. E essa carta, porquê?

Carlos – Essa carta é de 1916, quando eu era governador. Sun-Yat-Sen estava outra vez no exílio, e o governo de direita da China pediu a Portugal a extradição dos criminosos que tinham fugido para Macau. Claro que os tais criminosos que eles pediam eram os revolucionários, os companheiros de Sun-Yat-Sen. Os assassinos e ladrões podiam continuar em paz, no exílio dourado de Macau, organizando seitas, o jogo, o negócio do ópio.

Berta – e tu não entregaste nenhum republicano chinês.

(Separados, mimam beijos)

Carlos – como é que adivinhaste? Não foi fácil, houve uma grande luta diplomática, o Império Britânico a pressionar a Republica Portuguesa, mas ganhámos.

Berta - mas, a Inglaterra...

Carlos – nossa velha aliada, não é? Berta, Bertinha, menina bonita, tão ingénua...um Império, é um Império, é para mandar em tudo e todos. Não duram toda a vida, mas enquanto puderem...lembras-te da guerra do ópio? Os Chineses revoltaram-se porque , a dada altura, os Ingleses condenavam à morte os trabalhadores que se recusavam a tomar ópio...além de um grande negócio, a droga era para os acalmar...claro que os Ingleses não tomavam ópio... ( risos)

(Carlos da Maia deixa cair a folha e desaparece; Berta Maia mima abraço, “acorda” da evocação, levanta-se , vê a folha no chão e pega nela)

Berta Maia – Macau…

Criada – ( com cesto com comida, ovos, uma galinha) - Minha senhora, vieram entregar isto.

Berta Maia – Quem mandou isso?

Criada – Disseram que era da parte de um grande amigo do seu marido.

Berta Maia – Põe na cozinha. O Carlos, que tinha tantos amigos... agora, já nem dizem o nome.

Criada – Minha senhora, as pessoas andam com medo de falar, depois destes crimes, as pessoas são assim. Está aqui o jornal.

(Mostra jornal)

Berta Maia – (lê) Augusto Gomes, o empresário teatral, assassinou a actriz Maria Alves. Sabes quem é?

Criada – É o senhor do teatro, não é ?

Berta Maia – Sim, um empresário teatral que está ligado a todas as conspirações monárquicas, amigo do Alfredo da Silva da CUF, e ... uma testemunha da morte de Machado Santos...

(No Tribunal)

Augusto Gomes – Eu tinha ido a Pedrouços para uma missão de confiança, e fui ao Arsenal. Uns civis armados disseram-me que estavam à espera do senhor Cunha Leal para o assassinarem. Corri ao quarto do oficial de dia onde estavam António Granjo e Cunha Leal e convenci-o a ir ao hospital tratar do ferimento que já tinha no braço.

Depois do hospital fui a casa do Sr. Presidente da República e vi que só tinha dois polícias a protegê-lo. Dirigi-me ao Sr. Manuel Maria Coelho, chefe do golpe e pedi protecção para o Sr. Dr. António José de Almeida. Depois fui ao Rossio e meti-me num carro para ir para casa; passando no Intendente, um grupo armado disse que o carro seria preciso para levar um cadáver à morgue. Contra as minhas súplicas, mataram o Almirante Machado Santos. E consegui, a muito custo, que não fossem a casa dos senhores Barros Queiroz e Sotto Mayor, que também estavam condenados a morrer. Horrorizado com tanto sangue inocente que tinha visto correr, fugi para casa.

(Sai)

(Continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário