sábado, 18 de dezembro de 2010


A paz num abrir e fechar de olhos (Era assim quando, há uns anos)


Marcos Cruz





Há um antes e um depois do respirar fundo assim que se chega ao cais de embarque para a Afurada. Podem o dia ou a noite, dependendo dos casos, ter sido cansativos, frustrantes ou até deprimentes, que ali, massajada pelo bater de asas das pombas, pela bricolage sonora das tainhas nas águas marginais (como elas), pela placidez distante da povoação em frente e pela milagrosa frescura de toda aquela velhice, uma pessoa esvazia-se de tudo. Sobretudo de si.

Lá vem então um dos barcos. São dois, o Flor do Douro e o Flor do Gás. Partem de quarto em quarto de hora, para cá e para lá. E não se cansam. A história repete-se, mas as histórias dentro dela e deles tem sempre um dia mais, um gesto novo. As margens são como braços que nos restituem a idade em que do sossego ao espanto, e do espanto ao sossego, vai um abrir e fechar de olhos. É esse o tempo que dura a travessia.

Casimiro Manuel, Cristiana Marlene, Jesus valei-nos, O Predador, Ricardo Filipe. Atracadas de um lado e do outro, as casquitas de noz têm nos nomes a única raiz, que os cabos também desprendem. Apetece fazê-lo de cada vez que ali se está, suspenso da brisa e de todos os clichés que, simbolizados no pôr-do-sol, essa incorrigível instituição do romantismo, nunca perdem o encanto. Naquele leito, o lodo é um fait divers, não mais que o mau princípio onde a vontade desenha a possibilidade dos sonhos.

Mas fiquemo-nos pelas flores, a do Douro e a do Gás. É uma forma de, atravessando o rio, mantermos os pés na terra. Bandeira de Portugal como cauda de cão feliz, lá vão e vêm uma e outra, envoltas no cheiro dos nomes que lhe deu a dona, D. Maria de Lurdes, setenta anos de vida sofrida, trinta e tal de dona das lanchas. E dos lanches, alegria dos reformados, muitos deles pescadores que ali se sentam para bater trunfos na mesa, beber uns copos e, se a maré estiver de feição, tirar peixes a rios antigos.

A paz revê-se nisso, superior à perturbação dos prédios feios que vão espreitando no cima da encosta, por sobre a dita Afurada de casas francas e relações firmes. O rio propaga o som das sandálias que lhe marcam o ritmo e entra-nos na boca como a saliva do apetite, feito desejo de nos descozinharmos. A crueza acena dali. Crua e cruel, por se mostrar tão nossa e ser dos outros. A Afurada é esse espelho. Cortando o rio de sol a sol, o Flor do Douro e o Flor do Gás são vozes únicas em defesa da travessia. Um euro para cá, um euro para lá. Se euros maiores lhe cortarem o pio, respirar fundo nunca vai ser a mesma coisa.

2 comentários:

  1. maravilha,Marcos. sempre ouvi falar da Afurada e nunca lá fui.Com este texto lá tenho que colocar a travessia na agenda.

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  2. E um grande escritor que tu és, Marcos. Fico à espera de um livro teu.

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