segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - O futuro da democracia


Analisada globalmente a democracia oferece-nos duas imagens muito contrastantes. Por um lado, na forma de democracia representativa, ela é hoje considerada internacionalmente o único regime político legítimo. Investem-se milhões de euros e dólares em programas de promoção da democracia, em missões de fiscalização de processos eleitorais e, quando algum país do chamado Terceiro Mundo manifesta renitência em adoptar o regime democrático, as agências financeiras internacionais têm meios de o pressionar através das condições de concessão de empréstimos. Por outro lado, começam a proliferar os sinais de que os regimes democráticos instaurados nos últimos trinta ou vinte anos traíram as expectativas dos grupos sociais excluídos, dos trabalhadores cada vez mais ameaçados nos seus direitos e das classes médias empobrecidas. Inquéritos recentes feitos na América Latina revelam que em alguns países a maioria da população preferiria uma ditadura desde que lhes garantisse algum bem-estar social.

Acresce que as revelações, cada vez mais frequentes, de corrupção levam à conclusão que os governantes legitimamente eleitos usam o seu mandato para enriquecer à custa do povo e dos contribuintes. Por sua vez, o desrespeito dos partidos, uma vez eleitos, pelos seus programas eleitorais parece nunca ter sido tão grande. De modo que os cidadãos se sentem cada vez menos representados pelos seus representantes e acham que as decisões mais importantes dos seus governos escapam à sua participação democrática.
O contraste entre estas duas imagens oculta um outro, entre as democracias reais e o ideal democrático. Rousseau foi quem melhor definiu este ideal: uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém.

Segundo este critério, estamos ainda longe da democracia. Os desafios que são postos à democracia no nosso tempo são os seguintes. Primeiro, se continuarem a aumentar as desigualdades sociais entre ricos e pobres ao ritmo das três últimas décadas, em breve, a igualdade jurídico-política entre os cidadãos deixará de ser um ideal republicano para se tornar numa hipocrisia social constitucionalizada. Segundo, a democracia actual não está preparada para reconhecer a diversidade cultural, para lutar eficazmente contra o racismo, o colonialismo e o sexismo e as discriminações em que eles se traduzem. Isto é tanto mais grave quanto é certo que as sociedades nacionais são cada vez mais multiculturais e multiétnicas. Terceiro, as imposições económicas e militares dos países dominantes são cada vez mais drásticas e menos democráticas. Assim sucede, em particular, quando vitórias eleitorais legítimas são transformadas pelo chefe da diplomacia norte-americana em ameaças à democracia, sejam elas as vitórias do Hamas, de Hugo Chavez ou de Evo Morales.

Finalmente, o quarto desafio diz respeito às condições da participação democrática dos cidadãos. São três as principais condições: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que alimentar-se e à sua família tem prioridades mais altas que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa.

Pode dizer-se com segurança que a promoção da democracia não ocorreu de par com a promoção das condições de participação democrática. Se esta tendência continuar, o futuro da democracia, tal como a conhecemos, é problemático.


(Publicado na revista "Visão" em 31 de Agosto de 2006)

2 comentários:

  1. Este texto do Boaventura Sousa Santos poderia ter sido publicado no preciso momento em que a Democracia foi inventada. Não quero com isto dizer que esteja datado, bem pelo contrário: é tão actual como seria nessa altura. Significa isto que a sociedade não evoluiu? Nem pensar. O que não me parece ter evoluído muito é o modo como a sociedade se relaciona com novos modelos e sistemas e paradigmas de governação. Tanto a nível macro (ditadura, democracia, etc.) como a nivel micro (governos, partidos, estruturas de poder, quaisquer que elas sejam), a maioria de nós tende a achar que o que vem a caminho é o mais perfeito, e por isso o deseja. Mas, como acontece com qualquer desejo, ele vigora até surgir o próximo. Então, para que isso suceda, há que destruir o anterior. É da natureza humana. Nada que nos seja exterior, mesmo tendo sido produzido por nós, e falo da democracia como de tantos outros sistemas ou desejos, deve ser endeusado, sob pena de não o deixarmos seguir naturalmente o seu curso de vida, ou seja, de não o deixarmos morrer em paz, de não o deixarmos ser uma flor que nasce, desabrocha e murcha e morre para depois renascer como outra coisa qualquer. O nosso orgulho cego na democracia - a que a frase "é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros" acabou por prestar, globalmente, um péssimo serviço, já que assentou como uma luva a quem dela se quis aproveitar e colocou à sua frente uma parede gigante, com uma espécie de cão de guarda assassino filado em cada novo horizonte que por ela ousasse trepar - é um dos réus que mais têm faltado às convocatórias para o desequilibrado julgamento da crise que (com ela) progride a céu aberto, nas instituições, nos gabinetes políticos, nas empresas, na televisões, na internet, nos jornais, nos cafés, nas casas e nas ruas. O que eu sugiro é deixarmos de fingir que estamos vestidos se todos sabemos que estamos nus. Este fato já rebentou pelas costuras. A democracia e a sua crise deixaram-nos sem desejos sociais definidos? Trouxeram-nos para um plano de puro individualismo? Então para quê fugir? Vivamos isso, saiamos do colete de forças que não nos permite ser quem somos e acreditemos por uma vez em nós, experimentemo-nos, estudemo-nos, meditemos e deixemos que naturalmente brote de nós a próxima flor, sabendo de antemão que também ela não irá ser a última. Caramba: o mundo gira com e sem homens!

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  2. É isso mesmo, Marcos, é isso mesmo! Eu bem tenho pregado, e não só eu, que é preciso começar a discutir-se que novas formas de organização poderão criar-se para o mundo que queremos que seja outro muito diferente desta coisa a que já nem puxo pela cabeça para dar nome. Mas a verdade é que, cada vez que se fala nisto, nos pomos a assobiar para o lado. Todos. Vamos andando, até temos partidos, dantes não tínhamos... Que mais democaracia queremos? E essa frase assassina,como tu muito bem dizes, desempenha o seu papel às mil maravilhas. É essa e a de que não se pode viver sem partidos que são o fulcro da democracia. Neste momento, isso é mais do que mentira e, contudo, eu não proponho que os partidos acabem. Tenho a consciência de que não se podem criar vazios súbitos sem nada para os preencher. Estas mudanças levam tempo e, de algum modo, já começaram. Não somos nós que vamos mudar o mundo, mas não nos fazia mal nenhum meditarmos sobre o assunto. E não só a nível da grande política. A todos os níveis que aí referes.

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