quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Dia de Lisboa - LIa Gama, Fernando Correia da Silva e Almada Negreiros, falam dos cáfés de Lisboa

Fernando Correia da Silva diz-nos como era no Café Chiado



Na Rua Garrett, em Lisboa, o Café Chiado é uma gruta mágica. Para além da
estudantada, ali abancam os surrealistas Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa, Alexandre O’Neill e Mário Henrique Leiria. Também os artistas plásticos Ribeiro Pavia, João Abel Manta, António Alfredo, o escultor José Dias Coelho. E ainda dois pretinhos angolanos, o Agostinho Neto que estuda Medicina e o Mário Pinto de Andrade que estuda Filologia Clássica, juntamente com o seu irmão Joaquim. O Agostinho é cara de pau, estou em crer que os seus lábios jamais ameaçaram sorrir. Justamente o contrário do Mário, que dá tudo o que pode por uma boa gargalhada. A este faço a vontade. Estamos em Janeiro de 1951 e faz muito frio. Digo, para quem me queira ouvir:

- Quem vir um sobretudo pelo de camelo a andar sozinho pela Rua Garrett, detenha-o e espreite lá para dentro. Verá, todo encolhido, um pretinho que atende pelo nome de Mário Pinto de Andrade.

À minha volta, o Mário e a restante malta desmancham-se a rir. Excepto o Agostinho, obviamente.

Insisto, quero verificar as diferenças até ao fim. Há um frequentador do Café, um homem de meia idade, com físico e cara de Buda. Tem um parafuso desapertado. Se ninguém lhe dá palavra, fica as tardes a contemplar uma chávena vazia de café. Chamo-lhe Sr. Engenheiro mas não sei se engenheiro ele é. Meto conversa, gosto das suas respostas que, normalmente, perdem o norte.

- Então, Sr. Engenheiro, onde é que foi ontem?
- Ontem fui à Feira Popular.
- Fazer o quê?
- Fui à montanha russa.
- E depois?
- Aquilo subiu, subiu, subiu e, lá no alto, parou.
- E depois?
- Depois começa a descer, a descer, a descer, ai que aflição.
- E depois?
- Depois chego cá abaixo e como um bife com batatas fritas.

Gargalhadas, o Mário mais que todos. O Agostinho continua impávido, rigidez.

Sussurro ao ouvido do Alexandre O’Neill:

- Estes dois angolanos são muito diferentes um do outro. Um dia destes ainda vão andar à batatada, é inevitável.
- Fernando, lá estás tu com a mania de adivinhar o futuro...
- A ver vamos se é mania ou intuição...

Era mesmo intuição. Anos depois, durante a guerra pela independência de Angola, o Mário e o Agostinho entraram num tal confronto que o Mário teve que emigrar para a Guiné-Bissau.


Almada Negreiros na sua tertúlia da Brasileira do Chiado



Para terminar, Lia Gama canta.nos os cafés de Lisboa. Ora aqui estão três versões coincidentes.


3 comentários:

  1. Muito interessante este trabalho do Fernando Correia da Silva - Não sei se reparaste, Fernando, na alusão da Lia Gama ao Gualdino Gomes. Não sabia que tinhas também conhecido o O'Neill - era um grande poeta e, como pessoa, era único. Este engenheiro existia mesmo - não é uma das tuas figuras de ficção, pois não? Um abraço, Fernando.

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  2. O Fernando, "borda" a realidade e a imaginação como poucos.Muito bom!

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