Na Rua Garrett, em Lisboa, o Café Chiado é uma gruta mágica. Para além da
estudantada, ali abancam os surrealistas Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa, Alexandre O’Neill e Mário Henrique Leiria. Também os artistas plásticos Ribeiro Pavia, João Abel Manta, António Alfredo, o escultor José Dias Coelho. E ainda dois pretinhos angolanos, o Agostinho Neto que estuda Medicina e o Mário Pinto de Andrade que estuda Filologia Clássica, juntamente com o seu irmão Joaquim. O Agostinho é cara de pau, estou em crer que os seus lábios jamais ameaçaram sorrir. Justamente o contrário do Mário, que dá tudo o que pode por uma boa gargalhada. A este faço a vontade. Estamos em Janeiro de 1951 e faz muito frio. Digo, para quem me queira ouvir:
- Quem vir um sobretudo pelo de camelo a andar sozinho pela Rua Garrett, detenha-o e espreite lá para dentro. Verá, todo encolhido, um pretinho que atende pelo nome de Mário Pinto de Andrade.
À minha volta, o Mário e a restante malta desmancham-se a rir. Excepto o Agostinho, obviamente.
Insisto, quero verificar as diferenças até ao fim. Há um frequentador do Café, um homem de meia idade, com físico e cara de Buda. Tem um parafuso desapertado. Se ninguém lhe dá palavra, fica as tardes a contemplar uma chávena vazia de café. Chamo-lhe Sr. Engenheiro mas não sei se engenheiro ele é. Meto conversa, gosto das suas respostas que, normalmente, perdem o norte.
- Então, Sr. Engenheiro, onde é que foi ontem?
- Ontem fui à Feira Popular.
- Fazer o quê?
- Fui à montanha russa.
- E depois?
- Aquilo subiu, subiu, subiu e, lá no alto, parou.
- E depois?
- Depois começa a descer, a descer, a descer, ai que aflição.
- E depois?
- Depois chego cá abaixo e como um bife com batatas fritas.
Gargalhadas, o Mário mais que todos. O Agostinho continua impávido, rigidez.
Sussurro ao ouvido do Alexandre O’Neill:
- Estes dois angolanos são muito diferentes um do outro. Um dia destes ainda vão andar à batatada, é inevitável.
- Fernando, lá estás tu com a mania de adivinhar o futuro...
- A ver vamos se é mania ou intuição...
Era mesmo intuição. Anos depois, durante a guerra pela independência de Angola, o Mário e o Agostinho entraram num tal confronto que o Mário teve que emigrar para a Guiné-Bissau.
Almada Negreiros na sua tertúlia da Brasileira do Chiado
Para terminar, Lia Gama canta.nos os cafés de Lisboa. Ora aqui estão três versões coincidentes.
Muito interessante este trabalho do Fernando Correia da Silva - Não sei se reparaste, Fernando, na alusão da Lia Gama ao Gualdino Gomes. Não sabia que tinhas também conhecido o O'Neill - era um grande poeta e, como pessoa, era único. Este engenheiro existia mesmo - não é uma das tuas figuras de ficção, pois não? Um abraço, Fernando.
ResponderEliminarO Fernando, "borda" a realidade e a imaginação como poucos.Muito bom!
ResponderEliminarai, se borda!
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