segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Noctívagos, insones & afins: Patrão Lopes

Fernando Correia da Silva

QUANDO TUDO ACONTECEU...

1798: Joaquim Lopes nasce em Olhão. - 1804: Entra na Escola Primária. - 1817: Emigra para Gibraltar, onde fica apenas 11 meses. - 1819: Segue para Lisboa e daqui para Paço de Arcos. - 1820: Remador na falua que liga a Torre do Bugio a Paço de Arcos. - 1823: 1.º salvamento, de pai e filho, na confluência do rio Oeiras com a foz do Tejo. - 1824: Casa com Maria do Rosário, sua prima em 3.º grau. - 1828: Salva o sargento Francisco de Sales. - 1833: É nomeado patrão da falua do Bugio. - 1856: Salva a tripulação da escuna inglesa Howard Primorose. - 1858: Tenta salvar os náufragos da escuna inglesa British Queen. - 1859: Salva o Comandante e mais dois tripulantes do Stephanie, navio francês. - 1864: Salva grande parte da tripulação do bergantim espanhol Achiles; salva toda a tripulação do iate português Almirante; El-rei D. Luís coloca-lhe ao pescoço o colar da Ordem da Torre e Espada, a mais alta condecoração portuguesa. - 1866: É nomeado mestre da Armada e graduado segundo-tenente. - 1882: Com 85 anos, e já tolhido das pernas, ainda tenta socorrer Lucy, lugre francês. - 1890: Por causa do Ultimatum devolve todas as condecorações que recebera do governo inglês; com 92 anos, morre em Dezembro do mesmo ano.



Filho de pescador, nasceste nos finais do sec. XVIII, à beira-mar, no Algarve, em Olhão. Vais à escola, aprendes a ler, a escrever e a contar, mas aos dez anos já estás a ajudar o teu pai na faina da pesca e logo começas a tratar o mar por tu. Trepas ao mastro, ferras a vela, lanças e puxas as redes, limpas e lavas o convés, manejas remo e croque, mas o que mais impressiona os outros pescadores é a tua assombrosa forma de nadar, pareces um golfinho a brincar por entre as ondas.

Na tua família o dinheiro é escasso. Por isso, aos 19 anos, com a benção dos teus pais, emigras para Gibraltar, em busca de melhor sorte. Mas não suportas o novo ambiente e, 11 meses depois, tornas a casa. Melhor dizendo: tornas à cabana dos teus pais.

Mais uns mesitos em Quarteira (Algarve) e partes para Lisboa. Dali vais para Paço de Arcos, frente à foz do Tejo, onde vivem muitos algarvios. Seduz-te o choque permanente entre as águas fluviais a abrirem passagem para o mar alto e as do oceano a quererem assaltar o leito do rio...


DE PAÇO D'ARCOS AO BUGIO

Na barra do Tejo há cachopos que afloram à superfície. Próximo da margem esquerda, há também um ilhéu rochoso-arenoso sobre o qual foi levantada a Torre de S. Lourenço da Cabeça Seca. Mas como o nome do ilhéu era Bugio, a fortificação passou a ser conhecida como Forte do Bugio. Sua função: guardar a entrada do Tejo. Mas dali nunca foi e jamais será disparado um tiro de ataque ou defesa, só de alarme. O Bugio acabará por ser convertido apenas em farol. Mas em 1820, quando tu arribas, no Bugio há uma permanente guarnição de 50 militares. E a única ligação que eles têm com terra firme, é a falua que faz a carreira Paço de Arcos - Bugio, ida e volta. Nessa falua vais alistar-te como remador. A soldada é apenas 12 vinténs, mal dá para comer. É por isso que arranjas trabalho complementar em canoas de pesca da barra. Pouco tempo depois consegues adquirir a tua própria canoa. Em consequência, começas a viver mais desafogado.

Durante as travessias da falua para o Bugio e da tua faina de pesca, observas atentamente as variações, quer de sentido, quer de intensidade, das correntes na barra, desde a preia-mar à baixa-mar. Observações mais do que vantajosas para aquela que virá a ser a tua vida.

PRIMEIROS SALVAMENTOS

Junto a Paço de Arcos o pequeno rio Oeiras desagua em plena foz do Tejo. Em Julho de 1823 um homem, com o filho às costas, tenta atravessar a vau o rio Oeiras. Perde o pé e ambos são arrastados para longe. Forte é a correnteza e todos temem acudir. Tu não temes, varar e domar as águas que bem conheces, é contigo. Mergulhas, salvas a criança e depois o pai.

Pouco tempo depois, no Forte do Bugio, repetes a proeza quando te atiras à água para salvar um cabo de Artilharia que tinha sido arrastado por uma vaga.

Em Paço de Arcos diz-se que tu fizeste jorrar generosidade e coragem desde Olhão até à foz do Tejo...

CASAMENTO

Em 1824 casas na Igreja de Oeiras (povoação ao lado de Paço de Arcos) com Maria do Rosário, tua prima em 3.º grau, também ela natural de Olhão e tua prometida desde os teus 18 ou 19 anos. Maria do Rosário dar-te-á sete filhos, duas raparigas e cinco rapazes. Dois deles, Quirino António e Carlos Augusto, também irão distinguir-se, tal como tu, no socorro aos náufragos.

O NOVO PATRÃO DA FALUA

Em 1828, outro salvamento que impressiona o povo é o do Sargento Francisco de Sales, também ele envolvido e arrastado por uma vaga quando se preparava para desembarcar no Bugio. Ele a ser arrastado e tu a mergulhares atrás dele, salvação!

O teu entendimento das manhas da foz e a tua valentia provocam a seguinte situação: em 1833, numa crise de cólera, morre o patrão (comandante) da falua do Bugio. É tradição que assuma a vaga o remador mais antigo. Mas desta vez todos os remadores pedem ao governador do Forte do Bugio que sejas tu o nomeado, apesar de seres o mais recente. E isso - argumentam eles - porque o patrão deve ser o mais hábil e o mais leal dos marinheiros. O governador não hesita, nomeia-te, passas a ser o Patrão Lopes, com direito a morar na Rua Direita de Paço de Arcos, junto àquele que virá a ser o Instituto de Socorros a Náufragos.

HOWARD PRIMOROSE

Em 1856 o Patrão Lopes socorre a Howard Primorose, escuna inglesa que naufraga.

Um salvamento atrás do outro mas aquele que te dá fama nacional e até internacional ocorre em 1856: Os Fortes de S. Julião e do Bugio disparam tiros de alarme, a escuna inglesa Howard Primrose encalhara nos baixios da barra. Tu, mais o teu filho Quirino e uns tantos voluntários, logo saltam para a falua. Seis horas a remar e não consegues aproximar-te da escuna, a falua é muito pesada para manobrar por entre baixios. A essa conclusão já tinham chegado os tripulantes de um escaler da Alfândega e de um vapor de guerra. Regressas a Paço de Arcos e vais buscar a tua canoa de pesca, embarcação bem mais ligeira. Mais 6 horas e a escuna, sob o impacto das vagas, já ameaça partir-se ao meio. Mas, finalmente, vocês conseguem resgatar o comandante e mais cinco marinheiros. Apenas morreu um que, apavorado com o navio a destroçar-se, se atirara precipitadamente à água.

Desembarcas os sobreviventes na estação fluvial de Belém e contas as peripécias ao Comandante da corveta Oito de Julho. Também lhe passas os nomes dos teus camaradas salva-vidas.

Pela tua bravura o governo britânico atribui-te a Medalha de Prata da Rainha Vitória e à tua marinhagem dá umas libras de ouro para aquecer os bolsos...

E as autoridades portuguesas? Não piam, ignoram o salvamento... Circunstância que provoca comentários da imprensa. É então que um oficial do Bugio, metido a esperto, se apresenta como o herói do feito, pois fora ele quem avistara a escuna encalhada e dera sinal de alarme. História logo revelada pelo Jornal do Comércio. Em consequência, El-rei D. Pedro V atribui ao espertalhão a Torre e Espada, a mais importante condecoração portuguesa. Mas passados dois anos, o mesmo Jornal do Comércio repõe a verdade publicando os relatos da tripulação da escuna inglesa e do Comandante da corveta portuguesa Oito de Julho. Por forte pressão da imprensa, é-te por fim atribuída a medalha de prata de D. Pedro e D. Maria.

Também é organizada uma subscrição pública para compensar financeiramente o teu heroísmo. Mas tu recusas, tu devolves, tu refilas:

- Quem tem que me remunerar é o Governo, não é o Povo, porque eu não dependo nem quero depender da caridade pública...

(Continua)

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