sábado, 9 de outubro de 2010

O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade -2, por Raúl Iturra

(Continuação)



Sem punir. Sem homilias. Se almoçavam ou não, já não era problema meu: elas sabiam como se alimentar... Uma criança não pode comer como um adulto, o seu corpo não tem essa capacidade. Na minha infância, os pequenos deviam comer tudo o que era servido na mesa dos mais novos, normalmente com quantidades idênticas às dos adultos. Os pequenos apenas podiam transitar para a mesa dos adultos, quando sabiam comer tudo sem refilar. Com novas aprendizagens, sabemos que há tamanhos e tamanhos, diferença que todo o adulto deve considerar. No meu trabalho de campo, tenho observado crianças, analisadas por mim, a serem alimentadas com pratos cheios como os dos adultos, e dois pratos de comidas diferentes.

A criança resiste. Muita comida e bem condimentada, cria um corpo doente. Por recomendação, os pais das crianças estudadas por mim e a minha equipa, começaram a servir comidas leves, sem especiarias. Ganharam em saúde. Não era fome o que as fazia comer, era a figura guardiã do pai, a que inventava a fome que o mais novo nem tinha: ou comia por amor aos seus ascendentes, ou por temor à punição.

Punição muito estranha: se não comia já, mais tarde nada podia engolir, nem o jantar da noite. Naturalmente, a criança, no dia a seguir, comia imenso. O comentário dos adultos observados por mim era sempre: “vês como o castigo dá bons resultados?” Mas, uma vez satisfeito esse obrigado jejum, de “barriga cheia”, tornava a desventura de não querer esses pratos cheios. Os mais novos comem porque têm um guardião no tempo, na sua idade da inocência, como era denominada por Freud, a cronologia infantil. Um guardião que o analista denominou pai castrador – fosse pai ou mãe. Idade da Inocência combatida por ele ao definir a sexualidade das crianças, como se verá ao analisarmos o seu texto de 1905. Texto comentado em 1979 por Cármen Barroso e Cristina Bruschinni, no seu trabalho intitulado: “Sexualidade infantil e práticas repressivas”. Dizem elas que as crianças teriam dois defensores: Freud, por conceder à sexualidade infantil um confortável trono real, em que esta caminha sob vermelho tapete psicanalítico, e Malinowski ao provar nas Kiriwina que o complexo de Édipo não é universal No caso de Malinowski é bem mais simples.

 Consegue provar que o Complexo de Édipo não é Universal, ao existir o matrimónio da mulher do irmão, donde, os filhos são da mulher e do que nós denominamos tio. Apenas se esqueceu que há incesto e Complexo de Édipo no caso do acasalamento se realizar dentro do mesmo clã ou, se o homem da mulher do irmão ama as crianças, e não gosta essa tradição dos varões transitarem para a casa do irmão da mãe. Tudo é muito simpático quando é narrado, mas na realidade o quotidiano é quem fala. Malinowki nada diz, mas os meus colegas que pesquisam na Melanésia têm observado e escrito nos seus livros, os ciúmes que acontecem na realidade, como o caso estudado por Maurice Godelier, que veremos mais à frente, e The Sambia de Gilbert Herdt . Malinowski publicou o seu texto em 1927 onde compara a psicanálise com a antropologia, dizendo que o analista devia ir para o campo para entender a realidade.

No entanto, essa realidade é disfarçada pelo autor como é conveniente para a sua hipótese em debate com o analista Ernest Jones, discípulo de Freud. O debate acaba quando, como prova final do Complexo do Édipo não ser Universal, é publicado em 1929, o seu famoso texto de 506 páginas The sexual life of savages in North Western Melanésia , que também analisaremos aqui.

Notas:
 
O Médico Psicanalista João Cabral Fernandes, meu grande amigo, é uma pessoa amável e bem-criada no meio de imensos irmãos e irmãs, pela sua Senhora Mãe e pelo seu Senhor pai, seu duplo guardião porque, como Freud e Bion analisaram, a figura de pai é ser o guardião dos descendentes e porque o seu pai foi um Senhor Magistrado que bem sabia aplicar a lei para a pessoa certa. É de esse exemplo, que João Cabral Fernandes aprendeu a ser excelente ser humano. Fiz dez anos de psicanálise com ele e curou-me das ideias persecutórias, adquiridas na vida adulta, quando fui levado para um campo de concentração aquando da minha visita ao Chile do Presidente Allende. O Dr. Cabral Fernandes, um homem empreendedor, é assim mencionado na Internet: «Criada em 1996 pelo seu Director Editorial, João Cabral Fernandes, a CLIMEPSI EDITORES veio preencher um vazio na área da edição de livros técnicos e científicos em português e afirma-se hoje no panorama editorial como uma editora especializada nas áreas de Psicologia, Psicanálise, Medicina, Saúde e Enfermagem. Tendo por objecto a edição e promoção científico – cultural de livros de referência, a CLIMEPSI EDITORES é hoje reconhecida pela sua qualidade no meio universitário português, colaborando com os principais editores internacionais. No âmbito da sua linha editorial, a CLIMEPSI EDITORES assume-se ainda como um parceiro privilegiado de diversos organismos internacionais, entre os quais, o Ministério da Cultura Francês».


Escrito na Revista Pesquisa – Fundação Carlos Chagas, nº 31, Dezembro de 1979, São Paulo, periódico que acolhe textos do Brasil e do estrangeiro e pode ser lido em: http://www.multiverso.com.br/resumo.asp?ofe_cod=611&parceiro=6&nome=revista-fapesp&gclid=CLXOl6i08JcCFYsh3god0nMyDQ a citação é da Revista em linha, num livro denominado Movimentos sociais, educação e sexualidade, página 253, 1979, em: http://books.google.com/books?id=KazvKsy88JcC&pg=PA253&dq=Freud+A+idade+da+inoc%C3%AAncia&lr=&hl=pt-PT#PPA6,M1 que diz resumidamente: os costumes e as ideias a respeito da sexualidade infantil variaram ao longo do tempo e nas diferentes sociedades. Freud, ao mesmo tempo que foi um inovador radical, não conseguiu fugir à influência da cultura repressiva da qual fazia parte, implicitamente justificando muitas de suas práticas. Apresenta dados colectados recentemente em São Paulo sobre práticas repressivas em famílias de baixa renda. Conclui que qualquer esforço teórico de compreensão das raízes da repressão da sexualidade infantil deve considerá-la também naquilo que representa de potencialidade de desenvolvimento da sexualidade adulta e deve colocá-la no contexto das demais práticas educacionais utilizadas em determinado tipo de estrutura familiar, situada numa dada estrutura social. Esta síntese pode-se ler em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/actions.actionsEdicoes.BuscaUnica.do?codigo=509&tp_caderno=0 Texto completo, em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/509.pdf. As referências a Freud, apesar de retirada das Obras Completas, 3ª Edição, Editorial Nueva Madrid, há uma tradução do livro de Freud de 1905 (em alemão) em inglês, On Sexuality, Pelican Books, 1979, Londres, retirado do Volume VII 1953, Standard Edition of the Complete Psychoanalitical Works of Sigmund Freud, 1953, Hoggart Press and the Institute of Psycho-Analysis, Londres, com os textos seguintes: “The Sexual Enlighment of the Children”; “On the Sexual Theories of the Children”;” Character and Anal Erection”; “Family Romances”. Volume IX, 1959: Contributions to the Psychology of Love, Volumes I-II & III; Volume XI, 1957: The Lies Told by Children; Volume XII, 1958: On Transformation of Instincts as Exemplified in Anal Erection; Volume XIII, 1955: “The Infantile Genital Organization”; “The Dissolution of Oedipus Complex”; “SomePhyaical Consequences of the Anatomical Distinction Amongst the Sexes”; Voluime XIX, 1961: “Fetishism”; “Female Sexuality”; Volume XX, 1961: “Sigmund Freud: An sketch of his life and Ideas”, first published as “The Short Account of Psychoanalysis”, Pelican Books, 1962. Comigo tenho uma reimpressão do texto On Sexuality, datada de 1982.

Sobre Os Sambia e a construção da masculinidade, com texto em inglês pode-se ler em: http://milena.27designs.com/ ou em várias outras entradas Internet da página web: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=The+Sambia&btnG=Pesquisar


Herdt, Gilbert, 1987: The Sambia. Ritual and Gender in New Guinea, Holt, Rinehart and Wiston, Chicago, USA, 227 páginas em formato de papel. Gilbert Herdt (born February 24, 1949) [1] is an American cultural anthropologist who specializes in sexuality and gender identity-based cultures. His studies of the 'Sambia' people -- a pseudonym he created -- of Papua New Guinea analyzes how culture and society create sexual meanings and practices. In the United States, Herdt has also studied adolescents and their families, the emergence of HIV and gay culture, and the role that social policy plays in sexual health. Biografia completa em: http://en.wikipedia.org/wiki/Gilbert_Herdt Comentários sobre o livro em: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=Gilbert+Herdt+The+Sambia. Deste livro não há versão portuguesa, podendo, todavia, serem lidos comentários em língua lusa: "A proporção em que masculino e feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. (...) e aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia." Freud, "A feminilidade". Comentários sobre este texto, citado de forma enganada pelo autor do artigo, em: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=Freud+A+feminilidade&btnG=Pesquisa+do+Google&aq=f&oq= Texto de Paulo Roberto Ceccarelli, psicólogo, em: A Construção da masculinidade, em Revista Percurso, São Paulo, Vol. 19, p.49-56, 1998. Diz, no início: “O modelo biológico do masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico, a despeito das esperanças daqueles que nele quisessem encontrar uma solução para os problemas de identidade: isso seria ignorar que o essencial da sexualidade humana reside em sua dimensão inconsciente.... O modelo freudiano do masculino e do feminino, lacunar e fechado num sistema simétrico binário, reflecte a dificuldade de Freud para falar destas noções. Além disso, as posições teóricas de Freud revelam que sua escuta não era imune a seus próprios complexos inconscientes, à sua própria organização identificadora e ao discurso social de sua época. Assim, ao expressar-se sobre a questão do masculino e do feminino, fala de "conceitos", de "noções" e até mesmo de "qualidades psíquicas". Em determinados momentos, refere-se ao masculino e ao feminino em termos de actividade e passividade; em outros observa que, tratando-se de seres humanos, esta relação é insuficiente.Texto completo em: http://www.ceccarelli.psc.br/artigos/portugues/doc/a%20construcao.doc.

Malinowki, Bronislaw, 1927: Sex and repression in savage society. Routledge and Kegan Paul, Ltd, Londres. Excertos do livro podem ser lidos em: http://books.google.pt/books?id=oXcxNvTMYv8C&dq=Bronislaw+Malinowski+Sex+and+repression+in+savage+society&printsec=frontcover&source=bn&hl=pt- PT&sa=X&oi=book_result&resnum=4&ct=result Versão portuguesa de 1973, Vozes, Brasil. Texto completo em: http://classiques.uqac.ca/classiques/malinowsli/vie_sexuelle/vie_sexuelle.html . Sobre o autor, pode-se aceder a: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bronis%C5%82aw_Malinowski#Bibliografia


Versão em luso-brasileiro de 1983, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro. O livro em língua lusa não está em linha. Há apenas comentários em: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&sa=X&oi=spell&resnum=0&ct=result&cd=1&q=bronislaw+malinowski+A+Vida+Sexual+dos+Selvagens&spell=1


(Continua)

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