terça-feira, 5 de outubro de 2010

A proclamação (Centenário da República)



Faz agora exactamente 100 anos, às 9 da manhã de 5 de Outubro de 1910, a bandeira da República foi içada na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. José Relvas fez a proclamação do regime e a nova insígnia nacional, que andava em milhares de mãos, feita artesanalmente, lá subiu no mastro perante uma multidão que enchia o Largo do Pelourinho (ou do Município). Estas mudanças são sempre traumáticas para quem as sofre com elas não concordando. As duas principais cidades do País eram maioritariamente republicanas e esse factor foi decisivo. Num país com 80% de analfabetos, as elites culturais eram também maioritariamente pelo fim da Monarquia. Mas, naturalmente, havia um número elevado de monárquicos mesmo entre os que contestavam a situação existente. Desde 1890, com a humilhante cedência perante o ultimato britânico, a instituição monárquica sofrera um rude golpe. Desde as comemorações camonianas de 1880, o ideal republicano vinha-se impondo entre grande parte da população – mas, além do ideal político subsidiário da Revolução Francesa de 1789,os dislates, na política e na vida pessoal, de D. Carlos foram uma das alavancas para o triunfo da República.

De facto, o rei D. Carlos, que era um homem culto e inteligente, portou-se de uma forma imponderada quer no plano político, quer mesmo na sua vida privada. No plano político, o seu reinado começou praticamente com um desaire – a vergonha do Ultimato – e continuou, com erros que só não eram evidentes para o próprio D. Carlos. Muitos monárquicos condenavam a vida de dissipação que o rei levava – amantes, prostitutas, filhos bastardos, gastos ostensivos e sumptuários. Mas tudo isso lhe seria perdoado se a sua conduta como chefe de Estado fosse aceitável. Todos sabemos como as coisas acabaram – com um Regicídio (em que morreu também o príncipe herdeiro) e com a subida ao trono de um jovem que não fora preparado para reinar. Há um livro muito interessante, o de Joaquim Leitão, «Diário dos Vencidos» que nos proporciona, a nós que quase só conhecemos a perspectiva republicana, uma visão da proclamação da República a partir do campo monárquico.

Seguir-se-iam dezasseis anos de caos quase permanente. Todos os vícios que afectavam a classe política e que tinham sido, com escândalos sucessivos, um dos factores na queda da monarquia, permaneceram intactos. Aos erros dos republicanos e às lutas ferozes entre eles travadas, somou-se a permanente conspiração monárquica. Para mim torna-se incompreensível, não o ideal monárquico do qual discordo, mas que respeito como a qualquer outro, mas a série de meias verdades e de mentiras com que os defensores da Monarquia procuram branquear os erros cometidos, as manobras sujas levadas a cabo pelos seus antecessores nesse conturbado período.

A primeira grande tentativa de destruir o novo regime foi a de Sidónio Pais. Acabou, como se sabe, com o seu assassínio. A segunda, apoiada no início por democratas que desesperavam com o caos instalado, foi o golpe militar de 28 de Maio de 1926 que, sete anos mais tarde, poria termo à I República e viria a consolidar-se num estado corporativo, autoritário, repressivo – uma versão nacional do fascismo e do nazismo que alastravam pela Europa e pelo mundo. A esse período, de ditadura e de obscurantismo, chamou-se a II República. Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, a normalidade democrática voltava e tinha início a III República.

Cem anos depois da queda de um regime anquilosado, antidemocrático por natureza, muitos dos males que afligiam a Nação, persistem – a qualidade da classe dirigente, a corrupção, a sistemática alienação da independência nacional, faz com que muitos portugueses sonhem com uma IV República.

Entretanto, saudemos pura e simplesmente a República, sem números ordinais a antecedê-la.

Viva a República! Viva Portugal!

2 comentários:

  1. Pouco anos depois de ter terminado a I República em Portugal, Raul Proença escreve na Seara Nova de 29 de Dezembro de 1930:

    «O mal da República está na miséria da sua ideologia e na estreiteza de vistas, na fraqueza ou na corrupção de grande parte dos seus homens.
    O mal da República está em não ter sido tolerante quando deve, e quando deve, enérgica.
    O mal da República está em que prometemos sempre mais rigores do que o permitem os princípios, para, afinal, termos sempre menos do que o exige a prudência.
    O mal da República está em que prometemos sempre dominar, por vezes, as nossas paixões de revindicta, outras vezes, muitas mais, os nossos sentimentalismos de piedade, não tendo sabido nunca ser justos ou inflexíveis na punição do crime.
    O mal da República está em termos ligado uma importância absoluta às formas exteriores do regime, o hino, as cores, a cartola do Presidente, a bandeira — que para mim me são, estética à parte, absolutamente indiferentes —, e nenhuma às suas aspirações, às suas doutrinas e às suas realidades essenciais.
    O mal da República está em nos verem sempre prontos a confiar no primeiro imbecil agaloado que possua os recursos materiais de subverter a ordem legal, e em termos esperado a salvação pública de todos (dos heróis, dos chefes, dos messias e até dos asnos), menos de nós mesmos.
    O mal da República está em termos feito consistir o nosso republicanismo em aclamar e vitoriar os homens públicos, em vez de os fiscalizar e controlar.
    O mal da República está na criminosa impunidade com que temos dado imperecível alento a todos os movimentos revolucionários, introduzindo, por assim dizer, o direito de insurreição permanente — e sem ideias, entre as regalias fundamentais do cidadão.
    O mal da República está em não termos a coragem de castigar o crime, o verdadeiro, o único crime (o de facto, não o de opinião, que não há crimes de opinião numa democracia) — prosseguindo assim, em vez da punição dos verdadeiros delinquentes, dos obstinados inimigos da ordem, a míseros bodes expiatórios, que nada têm a ver com as sucessivas traições à República perpetradas de há vinte anos a esta parte por muitos dos que se dizem republicanos.
    O mal da República, finalmente, está em que se deseja prosseguir no mesmo modo de vida — continuar a admitir as mesmas ilegítimas intervenções — e longe de aspirarmos a uma maior e mais efectiva liberdade, a um maior e mais efectivo controlo de todos os poderes por uma reforma total do regime da imprensa (que deveria instituir-se, em grande parte, num serviço colectivo dirigido e fiscalizado por representantes eleitos de todos os partidos), se pensamos em reformar esse regime é, pelo contrário, para colocar toda a imprensa, ou a que conta, sob a tutela do Estado, dirigida por representantes do poder constituído, o que é falsear inteiramente o funcionamento da democracia e suprimir de facto, como fizeram, com os óptimos resultados que se conhecem, o fascismo e o bolchevismo, todo o controlo governativo.
    São estes e outros males análogos que é preciso combater.»

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  2. Meu caro José Brandão, que magnífico comentário e como ele enriquece a simples nota que comenta. Mas temos de ser poupados - este comentário daria para um belíssimo post. Muito obrigado.

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