quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Que rumo(s)? - 1 - por José de Almeida Serra


1 DÉCADA PERDIDA OU "REGREDIDA"?

A última década traduziu-se, em Portugal, por um avolumar de problemas de cujos alcance e potenciais consequências muitos ainda não se terão dado conta: divergência acentuada, em matéria de crescimento, com a generalidade da UE e Zona Euro; saldos com o exterior (endividamento do País) que se situam a níveis insustentáveis; destruição acentuada do aparelho produtivo e queda de competitividade externa; défice das contas públicas por níveis exageradamente elevados e insustentáveis; endividamento público que começa a situar-se a níveis incomportáveis, continuando a crescer; aumento do desemprego, onde passámos a ocupar lugares cimeiros na UE; aumento da precariedade do emprego; níveis de pobreza que nos envergonham no quadro comunitário; perda de credibilidade nos mercados financeiros internacionais.

Como membro do Conselho Económico e Social (CES) desde há mais de uma década, e tendo tido alguma participação nos seus trabalhos, dei-me à tarefa de reler alguns pareceres produzidos desde 1997, tendo-me confrontado com toda uma série de análises e recomendações que muito nos teriam ajudado a evitar a presente crise, se os diferentes responsáveis tivessem dado um mínimo de atenção às sugestões e propostas formuladas. Confesso que me apeteceu nada escrever de novo, limitando--me a transcrever trechos de documentos aprovados pelo plenário daquele órgão que, estando constitucionalmente previsto, representa certamente o fórum mais representativo da sociedade portuguesa.

Desde há muito que vimos ouvindo o discurso da reforma e das reformas, mas algumas boas intenções têm-se confrontado ou com insuficiente firmeza de governantes ou com coligações de interesses que, quase sempre, as têm levado ao fracasso.

E, contudo, há um amplo consenso da sociedade relativamente à necessidade de introduzir profundas reformas em muitos campos. Dão-se alguns exemplos.

2 JUSTIÇA

Para quando uma verdadeira reforma da justiça, que está tendo custos democráticos tremendos e custos económicos desmesurados (certamente vários aeroportos e/ou terceiras pontes sobre o Tejo)? Sendo a justiça algo de essencial no funcionamento de uma sociedade, como pode esta intervir na avaliação da qualidade da justiça que tem, ou não, mas que paga?

”As questões respeitantes à justiça, por serem questões de sociedade, aconselhariam uma intervenção social mais alargada e a criação de órgãos efectivamente representativos dos vários interesses em causa. Desde logo deveriam ser feitos inquéritos objectivos no que se refere ao funcionamento das diferentes entidades, procedimentos e tempos. As estatísticas existentes deveriam ser enriquecidas com informações que evidenciassem a qualidade da justiça que temos (qualidade medida em função dos resultados e dos tempos). Seria de procurar conhecer-se o que são as efectivas necessidades da comunidade e solicitar-se sugestões ou propostas dos principais interessados visando o objectivo de bom funcionamento dos tribunais e outras entidades ou agentes. Poderia ser interessante proceder-se à identificação das soluções encontradas em diferentes países e sua eventual importação (com as adaptações que se revelassem necessárias).”(CES, Parecer sobre as Grandes Opções do Plano para 2002, aprovado na reunião do Plenário de 12 de Outubro de 2001, Lisboa, 2001, pág. 40)

“(...) não pode deixar de voltar a chamar(-se) a atenção para o facto de ocorrer em Portugal urna verdadeira crise da justiça, com efeitos perversos ao nível da sociedade, traduzindo-se tanto em problemas de carácter geral como, particularmente, no que se refere à adequada disciplina dos actos e das relações jurídico-económicas.” (CES, Parecer sobre as Grandes Opções do Plano para 2003, aprovado no Plenário de 25 de Setembro de 2002, Lisboa, 2002, pág. 17).

Ocorre-me a subtileza de um bastonário da Ordem dos Advogados quando um dia afirmou: “enquanto assim for (...) é minha convicção de que o nosso esforço (dos advogados) será útil na perspectiva da constituição do Estado de Direito que pretendemos, também para Portugal (Sublinhado meu; CES, Colóquio “A Justiça em Portugal”, Lisboa, 1999, pág. 170). Sendo subliminar, a mensagem é clara.


3. TRANSPARÊNCIA

A sociedade tem a percepção de se terem vindo a desenvolver blocos de interesses, podendo traduzir-se em conivências entre agentes vários: partidários, na administração pública, na justiça, polícias, etc. Como se justifica que, tendo o nosso país os níveis de corrupção e o posicionamento relativo que é apontado por vários estudos internacionais, não tenhamos em Portugal, virtualmente, qualquer processo julgado? Como tranquilizar a opinião pública e revalorizar critérios de rigor e de transparência?

“O CES congratula-se com a disposição do ministro da tutela de combater a corrupção na administração pública, reforçando as inspecções aos funcionários e o alargamento das auditorias, visando aumentar a eficiência e a produtividade da administração e obter uma maior celeridade nas decisões, passando os funcionários a ser geridos mais por objectivos e menos por parâmetros jurídico-procedimentais e devendo criar-se incentivos ao mérito e à mobilidade e aumentar-se as qualificações (…) não pode(ndo) desconhecer(-se) referências que se fazem à eventual existência de situações de corrupção, até porque têm sido amplamente referidas na imprensa e dado lugar a inquéritos vários, todos inconclusivos. Não se crê, contudo, que tais situações, a existirem, possam ser exclusivas deste ou daquele sector ou grupo funcional. O clima deletério que advém deste facto, para todos os aspectos da vida colectiva e, também, para o clima do investimento, em particular do investimento estrangeiro, justifica que algo de substantivo deva ser feito com vista a assegurar junto tanto da opinião pública como dos potenciais investidores a existência de efectivas situações de transparência.” (CES, Parecer sobre as Grandes Opções do Plano para 2002, aprovado na reunião do Plenário de 12 de Outubro de 2001, Lisboa, 2001, pág. 46)

Mas se a matéria não tem interessado tribunais e polícias, também não tem merecido a preocupação de académicos e instituições de análise (quanto mais não fosse pelas evidentes consequências económicas e sociais decorrentes).

(Continua)
José de Almeida Serra é um político português. Economista, ocupou o cargo de Ministro do Mar no IX Governo Constitucional, de 9 de Junho de 1983 a 6 de Novembro de 1985. Actualmente, é membro do Conselho de Administração do Montepio Geral e um dos Vice-Presidentes do CES - Conselho Económico e Social, além de colaborador da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social. Agradecemos ao autor a cedência desta valiosa análise da situação política, social e económica do País.

1 comentário:

  1. Com um Parlamento que só serve para desconversar, a Concertação Social podia desempenhar outro papel, mas basta ver as primeiras páginas dos jornais de hoje para concluir que não é dessa toca que sai o bicho. Os diagnósticos produzidos por inúmeros pareceres que repetem ao longo dos anos as mesmas dificuldades e remédios, são uma perda de tempo e dinheiro. A nova classe média alta criada pelo regime saído do golpe de 25 de Novembro domina toda a finança, a comunicação social, e apoiando-se nas corporações privilegiadas pelo sistema, define a distribuição da riqueza do país.
    Enquanto a classe média que vai empobrecendo não compreender que quem lhe tira o dinheiro são as classes que lhe estão acima e não os mais pobres, mudando assim de aliados, aumentará o número de necessitados.
    Dentro do regime, a solução é política, sem mudar os protagonistas, líderes partidários e presidente da República, em Portugal não se produzirá alternativa autónoma às ordens dos grandes da Europa.

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