segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Romance da Gata Preta , conto por Maria-Cecília Correia

(Colocado por Clara Castilho)


Antigamente era uso cantar-se de terra em terra – às vezes pelas feiras – romances que todos ouviam com muita atenção. Eram histórias já muito conhecidas, mas que agradavam sempre: a “Nau Catrineta”, a “Santa Iria”, a “Alcininha” e mais, muitas mais.

Se ainda se usasse cantar assim, poderiam também cantar o “Romance da Gata Preta”, como se de uma princesa se tratasse e estas aventuras fossem coisa de muita monta.

De seus primeiros dias não falaria este romance. Nada sabemos deles, como também não sabemos como foi raptada e posta no rochedo mais alto da praia, numa grutinha funda.

Nesse buraco se passaram as horas mais negras desta negra gatinha: sua mãe, não recebendo notícias dos raptores a pedir resgate, deu-a por morta, pensando talvez nalguma cobra mais atrevida. Há, no entanto, quem diga que talvez a própria mãe a tivesse escondido em momento de aflição, fugindo de rapazes dados ao desporto ruim de “aventa pedras” e que, de tão desorientada, se esqueceu onde pusera a filha.

De sua infância propriamente começa o relato quando umas mãos pequeninas entraram na gruta e, às apalpadelas, procuraram quem tão alto miava, que por toda a praia fazia sentir sua aflição.

Ah!, e para que essas mãos pequenas ali chegassem, como foi difícil a trepada, em risco de queda grande! Porque duas pessoas tiveram de se ajudar uma à outra para chegarem à gruta pequena no cimo do rochedo mais alto de Galapos, tal como os cavaleiros dos romances, atravessando montes e vales, enfrentando perigos sem fim para libertarem suas damas.

E assim a gata foi salva. E assim começa a sua história entre os homens.

Ela sentiu o calor de outro corpo; talvez que até tivesse percebido que havia carinho. Mas onde estava o outro corpo de pêlos tufadinhos que era sua mãe? Onde estava a língua húmida que a alisava e lhe dizia coisas assim “bom dia, bom dia, minha querida”? Os seus olhos, ainda fechados nada viam. Não sabia portanto que outros olhos a olhavam amigos e que já não estava sozinha no mundo.

Fechada entre os dedos quentes seguiu viagem para seu destino diferente.

Começou então a sua nova vida e também sua nova comida. Dantes era mais fácil. Sua mãe tratava de tudo: chegava-se a ela, aconchegava-a bem entre a barriga e as patas e o leite corria pela sua boca abaixo. Depois dormia e tudo era o melhor dos mundos.

Agora tinha de aguentar essa coisa rija que lhe metiam entre os dentes e que deitava uma comida ruim e mal saborosa.

- “Não e não”, diziam os miados da Gata Preta.

Mas a fome foi sua mestra. Primeiro mal e depois já melhor, aprendeu a comer apertada entre a mão quente que passou a ser a sua nova mãe.

A outra mãe, a verdadeira, foi ficando esquecida.

Só uma vez a recordou bem, ao encontrar uma pantufa de pêlos altos. Enroscou-se nela e fez rom-rom, sua satisfação em voz alta.

E rom-rom fez depois quando se sentia quente, quando começou a comer sozinha, quando se aninhava junto da mão-mãe. E corria já pela casa toda, conhecendo cantos e pessoas.

E acaba aqui o primeiro capítulo deste romance, onde se conta como a Gata Preta aprendeu as “Regras de Bem Viver entre os Homens”.

No segundo se diz como a Gata Preta encontrou um amigo e, mais do que um amigo, um amor.

Se fosse romance de princesa, esses cantores das feiras explicariam primeiro aos ouvintes mais atentos: “E agora um cavaleiro, sabendo da sua beleza e virtudes da princesa, chegou de um reino distante para pedir sua mão em casamento”.

Como soube da Gata Preta o Cambuta? (Era este o nome do gato vindo de longe).

Como passam as notícias no reino dos gatos? Nós não sabemos, mas deve haver uma maneira...

Encontrou-a a brincar com um berlinde. Como mandam as suas leis de cortesia, cheirou-lhe primeiro o nariz. E, nesse mesmo instante, soube que a Gata Preta não tinha mãe. Então, em vez de a pedir em casamento, como teria feito o príncipe, pensou: “Primeiro tenho de lhe ensinar como são os gatos; ela só conhece os homens e não chega”.

Bom gatinho, esse Cambuta, e esperto, pois era isso mesmo o que a Gata Preta precisava: viver essas leis de gato que ela trazia fechadas em si, desconhecendo-as – ou não as praticando – sem saber ainda que eram as suas.

E Cambuta, como uma mãe, ou como um avô paciente que senta ao colo um neto para que aprenda as letras, ensinou à Gata Preta como falam, brincam, bulham – como vivem – os gatos. E assim a Gata Preta soube que, neste mundo de tantos bichos, ela era uma gata. Aprendeu até a caçar as moscas que passeavam descuidadas nas vidraças.

Para começar, nada mau.

E foi crescendo um pouco mais até que ficou gata casadoura.

Vieram cavaleiros de outros castelos, perdão, gatos de outros jardins, gordos e bonitos; vieram gatos vadios, sem dono, contando suas aventuras; vieram gatos de cor lisa, outros de lindas riscas, velhos e novos. E a Gata Preta, de pêlo sedoso e mancha branca no nariz, escutava uns e outros, sempre fingindo desinteresse, sempre ouvindo serenamente com ar distante. Para si dizia: “Nenhum é tão bonito como o Cambuta”. E até que Cambuta nem sequer era bonito, mas ela tinha-lhe amor.

E foi assim que todos os gatos partiram de orelha murcha para os seus quintais, seus jardins, suas novas aventuras, sem que nenhum comovesse o coração da Gata Preta.

Nos romances de princesas, os músicos e cantores diriam: “Gostou do seu príncipe, casaram e tiveram muitos filhos”.

O mesmo foi com a Gata Preta: ela escolheu o seu príncipe – Cambuta – casaram e estão à espera de muitos filhos, muitos de uma só vez, coisa que só raras vezes acontece às princesas.


(publicado no Diário Popular – 8.01.1977)

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